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A Arte de Amar a Três
Eu, Tu e Nós

Teoria e Prática Para as Relações a Dois

Maria del Mar Cegarra Cervantes

A Arte de Amar a Três. Eu, tu e Nós

Teoria e Práctica para as Relações a Dois

Primeira edição: outubro 2014

Segunda edição: setembro 2017

ISBN 978-8594500183

© Maria del Mar Cegarra Cervantes, 2014

© HakaBooks.com, 2017

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Para ti meu Amor.

Obrigada por estes quase 25 maravilhosos anos caminhando, dando e recebendo tanto juntos. Obrigada por ainda roubares flores para mim.

Agradecimentos

Gostaria de dedicar um livro inteiro a esta parte.

Vem-me à memória uma antiga canção de que gosto muito, imortalizada por Chavela Vargas e mais recentemente por Paz Vega, chamada Gracias a la Vida.

De facto, a vida tem-me dado o necessário para ir construindo o meu caminho, desde o mais difícil e árduo ao mais alegre, desde o profundamente triste ao fascinante, desde o doloroso e absurdo ao simples.......

Estou grata à Vida por isso.

Neste momento, mais que agradecer o nascimento deste livro, agradeço a todas as pessoas que me possibilitaram ser o que sou, o facto de estarem na minha vida.

Agradeço em primeiro lugar à Helena Mineiro minha editora, o seu olhar atento, doce, focado e respeitoso, assim como a sua paciência e, sobretudo, a sua fluídez e simplicidade. Obrigada Helena!

Este nosso encontro não teria sido possível sem a Sofia Martins, que em 2013 me pediu para escrever o prefácio do seu livro “Aprendendo a Viver Comigo”. O projeto deste e de outros livros há muito que crescia em mim. Foi desta maneira que a Vida, mais uma vez, me deu um “empurrão” e ele se concretizou. Muito obrigada Sofia!

Sou uma romântica e fascina-me a ideia de escrever com uma pena e à luz da vela. Se bem que não chegue a esse “extremo”, escrevo à mão, e adoro quando a tinta das canetas acaba e as folhas dos cadernos chegam ao fim. Assim foi escrito este livro. Para o transcrever para o computador, tive a ajuda maravilhosa das minhas queridas colegas, Joana Quintino e Ana Caeiro. Obrigada pela vossa paciência e dedicação!

Obrigada Susana Mendes, por cada vez estares mais perto de mim.

Estou profundamente agradecida, pelo facto de ter conhecido o David Boadella, criador da Biossíntese pela mão da já desaparecida e muito querida Esther Frankel, minha Supervisora em Biossíntese, e a pessoa que trouxe esta abordagem para Portugal assim como para vários países. David, juntamente com Sílvia Boadella, continuam a ser uma inspiração para mim. Sou profundamente grata, de coração, a todos.

Durante estes anos, tenho acompanhado centenas de pessoas em Psicoterapia. Que privilégio ser escolhida para acompanhar todos estes “caminhantes”, e que privilégio ainda maior, quando se sente que se ajuda de coração! Obrigada aos que já acompanhei, e aos que ainda acompanho. Vocês são mesmo a maior das inspirações! Grata, muito grata!

Aos meus alunos e ex-alunos de tantos lugares. Obrigada pela confiança e entrega. Quantos workshops inesquecíveis. Não me cansarei de dar e receber os vossos abraços.

Olesea, um profundo obrigada pela tua absoluta dedicação, eficiência, honestidade e amizade. O CPSB não funcionaria sem ti.

Tatiana, obrigada por também seres um pilar no centro. Já tens alma de terapeuta!

Aos meus colegas, professores e colaboradores do CPSB. Já vivemos tanta coisa juntos. Cada vez gosto mais de compartilhar convosco o caminhar e a Vida. Obrigada!!!

A toda a minha família que está em Espanha, entre Andaluzia, Madrid e o Mediterrâneo. Sobretudo Mai, Paquita e o meu irmão Luís. No há palavras para descrever o Amor que sinto por todos vós. Obrigada pelo olhar amoroso e admiração com que sempre me brindam.

Tive a felicidade de ser presenteada com três filhos maravilhosos. Sara, João e Ricardo. Tão diferentes, saudáveis, livres e cheios de luz. Espero que deem continuidade a essa luz, e encontrem com quem compartilhá -la, com Alma e Coração. Vocês inspiram-me profundamente. A minha filha Sara, perguntou-me aos 5 anos, qual era a minha profissão. Não é fácil explicar a um adulto o que é ser Psicólogo e Psicoterapeuta, quanto mais a uma criança. Disse-lhe que o meu trabalho consistia em ajudar as pessoas a serem mais felizes. A partir desse dia, quando chego a casa, ela e os irmãos, perguntam-me sempre se o consegui. Que estupenda Supervisão para mim própria. Obrigada aos três, por tanto Amor, desafio, questões, e por compartilharem comigo tão naturalmente, os vossos primeiros amores.

Que dizer do meu marido António….Dedico-lhe este livro, pois para além dele ser o meu maior e melhor crítico, é o meu companheiro de vida. Ele convive com os meus lados todos: os luminosos e os nada luminosos. Eu, Tu e Nós, Somos Nós Meu Amor. Para ti, a palavra Obrigada não serve, porque se revela muito pequena.......

A vida caprichou comigo. Presenteou-me e brindou-me com um ser do mais maravilhoso que há.

Nota de Autor

Quando me perguntam o que me moveu, o que me motivou e levou a escrever este livro, a palavra que inequívocamente me surgiu foi “partilha”. Não aspiro de todo a que este livro seja um manual ou algo miraculoso. Nada disso. Na realidade gosto de partilhar a minha experiência como pessoa, mulher e psicoterapeuta. Assim mesmo, por esta ordem. Ao longo da minha vida o que mais me tem ajudado a crescer (e ainda ajuda), é sem dúvida partilhar experiências, sentires, saberes.... Ser testemunha da vida. Gostava que de alguma maneira eu pudesse ajudar a fazer pontes: entre o quotidiano, história, filosofia, psicologia, medicina, intuição, coração, sociedade, psicoterapia, pequenas coisas, grandes coisas...

Não quero cair no erro de dizer que um tempo qualquer que já passou foi melhor do que aquele que eu vivo agora, ou que o melhor (ou pior) ainda está para vir. Nesta realidade em que me encontro contigo, e em que estás a iniciar a leitura destas páginas, há todo um mundo de sensações para descobrir, sentir e entender cada vez melhor. Comecei a ser muito mais feliz quando entendi, em profundidade, o que quer dizer “não alimentar expetativas e viver no presente”. Há muita confusão com certas ideias que são maravilhosas mas que se interligam de forma funcional ou superficial.

Muita coisa está escrita. Muito é o conhecimento que está disponível. Saber fazer uso dele, já é outra coisa. Este livro é uma parte de mim, uma vez que só se pode escrever sobre algo que se sente e conhece. Assim, por entre as histórias que se seguem, desnuda-se uma parte da minha alma. Cada vez mais me dou conta, de que não são precisas estratégias ou complexidades, sobretudo no que se refere aos relacionamentos.

Por esse motivo e porque na realidade, confesso que não consigo fazer de outra maneira, escrevo tal qual falo, sem nenhuma aspiração literária. Quem me conhece sabe que, embora me expresse em várias línguas, neste momento não falo corretamente nenhuma delas, nem sequer a minha lingua materna, o castelhano. Sem dúvida que é minha intenção, tocar de alguma maneira a “tua sensibilidade” e poder olhar profundamente para a descoberta que é amarmo-nos e amar a pessoa que caminha ao nosso lado. Seja durante um tempo nas nossas vidas, seja por toda esta nossa existência.

Para esta partilha, “socorri-me” dos muitos casais que tenho acompanhado ao longo destas duas décadas. Procurei escolher alguns exemplos, entre os muitos que conheço. Surgiram espontaneamente por entre a minha memória e o meu sentir, e todos eles estão protegidos na sua intimidade. Na realidade, trata-se sobretudo de possibilidades e realidades do viver em relação ao ser humano.

A segunda parte do livro tem o nome de “Pinceladas” pois foi assim que a senti. São ideias e partilhas de possibilidades em consultório. Não foi minha intenção aprofundar esta temática, mas antes lançar algo introdutório, esperando com isto ajudar tanto profissionais como “os apaixonados” por estas áreas.

Sou uma mulher de ação, gosto de experimentar, viajar, conhecer por mim, arriscar e estudar, gosto do movimento da vida, de fazer várias coisas ao mesmo tempo, e de facto a ideia de iniciar esta viagem de partilha através da escrita esteve sempre presente em mim.

Sou filha de um escritor. O meu pai, Juan Cegarra Perez, que já fez a sua grande viagem há mais de uma década, e ao qual eu era profundamente ligada, escrevia quase todos os dias. Publicou várias obras, fez radio, escreveu no Jornal da cidade de Huelva, no sul de Espanha, tendo escrito várias obras para teatro. Ainda me lembro como se fosse hoje, do som das teclas da máquina de escrever, que a altas horas da noite, se faziam ouvir na nossa casa de Espanha. Aquilo era-me tão familiar, que quase funcionava como uma canção de embalar. De alguma forma esta também é a minha homenagem a esse homem maravilhoso, culto e doce que ele era.

Boa leitura.

Com carinho.

Maria del Mar Cegarra Cervantes

Parte I

Capítulo I

Passa das 8 da noite.

Laura não gosta de sair tão tarde do consultório, mas às vezes acontece.

Como tantas outras pessoas, também ela tem de gerir o tempo.

No passado fora muito pior. Frequentemente chegava ao fim do dia com uma sensação de cansaço, e de ter deixado muitas coisas “por fazer”. Invariavelmente surgia a culpa, o mal-estar, a irritabilidade. E as tarefas acumulavam-se. Nessa fase, o mal-estar instalara-se de tal forma, que se tornou físico. Era como se tivesse fragmentos de pedra onde acaba o pescoço e começam as costas, apesar da “quase hérnia”, a famosa L5, estar a melhorar. Como psicoterapeuta corporal, sabia muito bem o que originara esse acumular de tensões, essa “carga a mais”. Ainda sentia que ninguém poderia fazer tão bem quanto ela, portanto, era melhor não delegar e controlar o mais possível. Aos poucos, foi-se dando conta de que estava errada, na forma como olhava o mundo e o seu relacionamento com os outros. Mas principalmente consigo mesma. Além do fantástico “complicómetro mental” com frases e mais frases dizendo-lhe “o que devia ou não devia, ou o que já devia saber”, continuava a irritar-se por sentir coisas tão normais (e que o mais comum dos mortais entende), sem ser capaz de lhe dar uma resposta evoluída (o que será isso de ser evoluído???) e simplesmente ser mais eficiente, ou evoluída ou organizada ou........ tantas coisas que nessa altura conhecia em teoria, compreendia cognitivamente, mas que ainda entrava por alguma porta difícil de manter fechada. Então esgotava-se, caindo num esforço tremendo para dar “conta de tudo”: família, trabalho, estudos, peso acima do que é normal, peso abaixo do que é normal, dinheiro, sistema….tudo!!!

Mas no dia em que saiu tarde do consultório, a última sessão tinha-a “perturbado” mais do que era habitual. Não porque tivesse algo de extraordinário ou traumático, mas porque, como em tantas outras vezes, se falara de Amor, do que é, e de como o podemos expressar. Laura atende adultos individualmente, mas sobretudo casais. Nesse dia, a última sessão centrara-se num casal algo “atípico”. Eram jovens, de 27 e 30 anos. Ainda não viviam sequer juntos. Procuraram Laura para que com ela pudessem descobrir o que é o Amor, o que é ter uma relação saudável. Estavam apostados em perceber se andavam “enganados” com tudo aquilo. Tinham de descobrir se queriam mesmo casar. “Não queremos fracassar!”, diziam, “todos à nossa volta fracassaram e temos medo se isso também nos acontecer.”

Este desafio era delicioso, envolvente, estranho, e, ao mesmo tempo, maravilhoso e profundo. Era impossível deixar de olhar para esta oportunidade como algo que permitisse uma importante evolução.

Laura, estava pensativa. Não tinha dúvidas sobre o que era o Amor na sua vida. Pelos menos assim o sentia. Mas será que às vezes também não se enganava a si própria? Como será que se constrói o ideal de um casal? Que histórias serão essas que nos acompanham, que acompanham a nossa história e que vão construindo a nossa realidade interna?

Sentiu-se impelida a encontrar uma forma de os ajudar na sua demanda, na busca e validação do Amor que sentiam. E, como se isto não bastasse, ela era a terceira psicoterapeuta que este casal consultava, e começavam a desanimar. Ninguém parecia entender a profundidade do seu pedido.

Como costumava fazer, alertou-os para o facto da psicoterapia não ter como objetivo ficarem juntos. A psicoterapia tinha por finalidade, que eles encontrassem suficientes motivos entre o sentir, o pensar e o fazer, para ficarem juntos. Se algum dos dois não viesse a encontrar motivos suficientes, de comum acordo, após o processo terapêutico, iniciar-se-ia então uma separação consciente, com respeito, permitindo que cada um levasse para o seu caminho futuro o que tivesse “aprendido”.

Enquanto se explica este aspeto aos casais, habitualmente sente-se uma tensão na sala. Talvez porque não o esperem, talvez porque a expetativa seja que “o certo é ficarem juntos”. Talvez porque para um é claro que sim, e para o outro é claro que não. Neste caso, um fica “em pânico”, o outro fica de certo modo “aliviado”… Trata-se de um momento que trabalha a relação numa dinâmica mais humana e realista, menos ilusória. Laura costuma dizer que a “expetativa mata o fluxo”. Bom de dizer, difícil de perceber, e ainda mais difícil de permitir que aconteça. Temos todos tantas expetativas e ideias pré-concebidas. Hipotecamos tantas vezes a nossa existência, ao considerarmos que só seremos felizes “se isto, ou aquilo acontecer”, “se tiver isto ou aquilo”... Deste modo, o percurso, até supostamente ter “isto ou aquilo”, transforma-se num caminho bastante tortuoso.

Durante um minuto, os dois ficam em silêncio, ouvindo a “explicação”. Tudo corresponde ao que fora pedido. Um minuto parece uma eternidade quando estão envolvidos sentimentos tão profundos e delicados. Durante esse silêncio, fundo, carregado de tensão e de tristeza, não se olham nos olhos. Depois, voltam a olhar-se. Uma respiração que soa a coragem, dá lugar à voz, e com ela, em uníssono, ouve-se “é isso o que nós queremos.”

O primeiro grão de consciência está colocado. Pela frente há agora muito trabalho a fazer. Muito, mesmo!

Ele é um homem enorme e encorpado. Mede quase dois metros de altura. Tem a parte superior do corpo muito desenvolvida. Está tenso. A respiração é acelerada, ansiosa. O discurso exaltado, as palavras rápidas. O olhar esquivo, às vezes quase zangado, e outras profundamente triste e delicado, é próprio de uma criança de três anos.

É um homem atraente, com movimentos bruscos. E no entanto, apesar de ser grande, parece não ocupar grande espaço na sala. Há pessoas mais pequenas, cuja presença se nota muito mais.

Diz-se que o corpo traduz o que nos vem da alma. É ele que abraça, que se move, que fala, que se agita. Aquele que concretiza a vida. O corpo, ocupa mais ou menos espaço, conforme a energia disponível que tem para se expressar no mundo, exprimindo de forma mais ou menos adequada, a vivência interior de quem o habita. Assim, há pessoas pequenas que ocupam muito espaço, e outras, muito maiores, que quase não o ocupam, sendo por isso, pouco notadas.

O espaço que este jovem homem ocupa, não corresponde ao seu físico.

Luís tem um irmão dois anos mais velho, com traços físicos semelhantes aos seus, mas muito mais brusco, “não questionava nada na sua vida”, confessa Luís, acerca do irmão.

Ambos são muito ligados à família, trabalham juntos na mesma empresa familiar, uma fábrica de sabonetes, deixada pelo pai. Vivem na região da Guarda, conhecida pela dureza do clima: muito frio no inverno, muito calor no verão. Educados nos preceitos de uma família tradicional portuguesa, como acontece muitas vezes nos países latinos, conhecem a obrigatoriedade de, aos fins-de-semana, levarem as suas namoradas a almoçar a casa dos pais, e, verdade seja dita, elas não poderiam ter encontrado melhor família…

A mãe de Luís, uma autêntica matriarca, domina os três homens da família. Tivera uma “não infância”, e, sendo a mais velha de seis filhos, criara praticamente os 5 irmãos. Este facto, concedera-lhe um estatuto de mulher e mãe com M grande. Algo, que ela fazia questão de deixar claro, reforçando a ideia de que tinha sempre razão.

O pai trabalha. Só trabalha. Mergulhado no silêncio. Sempre. Depois de ter deixado a fábrica e a empresa aos filhos, passou a dedicar-se exclusivamente à horta e aos animais que cria. Não tem “voz” na família, mas isso não parece incomodá-lo. Todos brigam constantemente, menos ele. Embora seja alvo de críticas ferozes, devido à sua passividade, nunca perde a compostura. Os filhos frequentemente brigam entre si, a mulher acompanha-os nas discussões. Tudo é motivo para discutirem: a roupa, a comida, a distribuição de tarefas, a utilização do carro, a escolha do restaurante.

Sempre juntos, e sempre em tensão. É difícil estarem juntos, mas não se imaginam separados uns dos outros. Luís sofre de insónias. Constantes. Abusa do café, do açúcar, farináceos, das bebidas gaseificadas, e come muita carne. Tem naturalmente digestões difíceis e, consequentemente, abusa também dos antiácidos para o estômago.

Namora com Vânia, desde há 8 anos. É um amor que vem da adolescência. Luís assume gostar muito de Vânia, mas não acha que seja preciso dizer-lhe que a ama. Considera isso uma estupidez. Sim! Vê-a como sua mulher. Como mãe dos seus filhos, mas tem-na como uma mulher “muito difícil”.

Vânia, mede cerca de um metro de setenta, leva a vida em dietas, e tem problemas de peso que oscila entre o demais e o de menos. Mas o mais grave é o estômago dilatado. Aquele pneu defensivo, que a psicoterapia corporal identifica como a dificuldade em colocar limites ao nosso território. Tem muito medo da autoridade e, ao mesmo tempo, um imenso fascínio por ela, atraindo para a sua vida, pessoas autoritárias.

Tem umas feições lindas, e uma pele maravilhosa. Chora constantemente enquanto fala, no entanto não perde o raciocínio, facto típico de quem chora desde há muito. Desde sempre.

Vânia tem um irmão 4 anos mais velho de quem gosta muito, apesar de manterem uma relação distante.

O seu pai bebera compulsivamente, mas desde há dois anos, que não toca numa gota de álcool. Prometera deixar de beber quando nascesse o primeiro neto, e parece estar a cumprir a promessa, desde que o sobrinho de Vânia nasceu.

É mecânico de automóveis, trabalha sempre até tarde. Sempre teve relações extraconjugais. Agora, com 65 anos, está “mais calmo”. Nunca expressou afeto pelos filhos, bateu muito no filho e na mulher. Só Vânia escapou às tareias. Mas assistia a tudo impotente e em pânico. A mãe, desde muito cedo, destilou raiva porque a filha era a “princesa” do pai, e por ela própria não ter sido tratada com essa distinção. Insultava Vânia constantemente, chamando-lhe “burra e gorda”, acusando-a de “andar à toa” na vida. E batia-lhe frequentemente, proibindo-a de se queixar ao pai, e responsabilizando-a pela lástima em que a família se tornara.

Vânia, naturalmente, tem uma voz trémula e doce, própria de quem não pode falar alto. Sempre que usa a voz, fá-lo com receio de ser castigada.

Apesar disto, energeticamente, ocupa bastante espaço. Luís aparecera na sua vida como um “salvador”, um príncipe com um cavalo branco (um Fiat branco) que a levava a passar aos fins-de-semana, integrando-a na família ideal, onde nunca ninguém a iria “proibir” de comer, ou criticar o seu peso. Onde, acima de tudo, havia quem lhe dissesse que gostava dela. Nunca ela ouvira tal coisa. O pai não lhe batia, mas também não a acarinhava.

A sexualidade entre Luís e Vânia é excelente, ambos têm muita libido, em especial ela. Sempre que tem uma emoção forte, seja de alegria, ou de tristeza (esta última mais frequente) o sexo acalma-a. Conta, como exemplo, que, durante os dias de velório e funeral de uma tia muito querida, tinha querido por diversas vezes fazer amor. Esta recordação fá-los rir. Vânia “anestesia” uma realidade densa, com outra igualmente intensa.

Laura entende a causa que a leva a essa “necessidade”. E acolhe-a naturalmente como algo que flui entre eles. Na primeira sessão, que habitualmente tem uma duração que ultrapassa a hora e meia, Laura toma notas destes tópicos à frente dos seus clientes. Depois, nunca mais escreve na sua presença.

Laura volta para casa. Demora cerca de uma hora neste trajeto. Tem tempo para autorregular-se e pode transitar para outras dimensões da sua vida. A maior parte das vezes viaja de metro e comboio, pois não gosta de conduzir. Tem de passar a Ponte 25 de Abril que já atravessou centenas de vezes, mas, de cada vez que o faz, fica encantada como se fosse a primeira. Continua “a sentir” a última sessão, recordando as teorias dos “supostos” três tipos de amores de que fala a bióloga e antropóloga norte americana, Helen Fisher.

Fisher fala do Amor Sexual, do Amor Romântico e do Amor “Apego”. Explica como neurologicamente estes três tipos funcionam distintamente, “ocupando” diferentes áreas do cérebro, tendo também diferentes “químicas cerebrais”, isto é, com vários neuro-recetores em diversas zonas do cérebro.

No primeiro tipo, seria mais correto falar-se de Impulso Sexual, a atenção é dirigida para indivíduos que tenham caraterísticas apelativas do ponto de vista sexual: um corpo atraente, uma cara bonita, mãos, voz, cabelos, forma de andar, cheiro, ou gestos sensuais… Seja no homem ou na mulher, todos temos gostos particulares e somos atraídos por caraterísticas físicas e biológicas.

O “Amor Romântico”, individualiza e foca a atenção numa só pessoa. Esta distingue-se de todas as outras, ocupando um lugar onde parece não haver espaço para mais ninguém.

Por último, o “Amor Apego”, facilita a convivência, sente-se o apoio e o cuidado para viver a dois, criar filhos, viver no sistema e ter conforto com isso.

Estes três sistemas podem coincidir/conviver, ou não. É possível terse um enorme desejo sexual por uma pessoa, sem que se sinta por ela amor romântico. Do mesmo modo, pode acontecer amar-se uma pessoa durante anos e experimentar um desejo sexual por outras pessoas, amá-las também “romanticamente” sem deixar de amar a primeira.

É igualmente possível, estar fortemente “apegado” a alguém e funcionar dinamicamente com a família, mas não sentir nem impulso sexual nem amor romântico. Também é verdade que estes três sistemas: amor como impulso sexual, amor romântico e amor apego, podem acontecer na mesma pessoa em momentos diferentes ou ao mesmo tempo.

São as contradições do ser humano na procura da felicidade, com mais ou menos consciência.

Parecia claro que este casal tinha um bom impulso sexual, no entanto, um e outro, duvidavam da profundidade do amor romântico, e tinham sérias dúvidas quanto ao facto de poderem vir a criar um saudável apego, quando vivessem juntos.

Laura, prosseguia a viagem para casa, onde a esperavam os filhos Martin e Clara, de 16 e 14 anos, assim como o companheiro da sua vida, o marido Tomás.

Laura tem 44 anos e Tomás 52. Tomás enviuvou da primeira mulher muito cedo. Ela e o filho que esperavam, morreram num trágico acidente de viação no segundo ano do casamento. Tomás tinha 27 anos. Embora a relação que mantivera com a primeira mulher fosse mais de apego do que de amor romântico ou de impulso sexual, tinha gostado muito dela. Os dois eram amigos desde crianças.

Este acontecimento deixou Tomás extraordinariamente deprimido e, como a sua família biológica era bastante disfuncional, chegou a pensar várias vezes em “deixar esta existência tão pouco interessante”.

Professor de português, Tomás vivia “enfronhado” na música e nos seus livros. Nesse mundo entre a literatura dos grandes portugueses (Pessoa, Eça, Camões, Almada), e onde não faltavam também Nietzsche, Dostoyevsky, Kafka e, nos momentos mais “desafiantes”, Schopenhauer.

Tomás é alto e magro. O cabelo é farto. Usa óculos. Tem as mãos grandes, e os seus movimentos são delicados. É muito educado, mas homem de poucas palavras, sempre mergulhado nos seus pensamentos e sentimentos, como o são todos aqueles que primam pelo “silêncio”. Só ocupa espaço quando quer. E ele não quer ocupar espaço.

Quando conheceu Laura, Tomás tinha 32 anos e ela 24. Laura, acabara o curso de Psicologia, e dava início à sua prática clínica, procurando especializar-se. É absurdo pensar que se sai de um curso, sabendo fazer clínica.

Tomás tinha marcado uma consulta de Psicologia na clínica onde Laura começara a exercer. Ía ser seu cliente. Ía, porque nunca chegou a sê-lo. Entrou no gabinete onde Laura se encontrava e sem que ela pudesse abrir a boca disse-lhe:

“Desculpe, esperava alguém mais velho e experiente. Realmente pedi uma mulher. Acho as mulheres mais sensíveis.”

Sem dúvida Tomás necessitava de energia feminina e materna, mas não achava que as fosse encontrar naquela “miúda” de vinte e poucos anos. Saiu da sala, pedindo desculpa. Ofereceu-se para pagar a sessão, mas não queria ficar.

Laura não conseguiu reagir. Ficou colada à cadeira, desejando ter mais 20 anos, cabelo grisalho e óculos na ponta do nariz. Depois, ficou irritada consigo própria, porque nem sequer tinha conseguido abrir a boca. E porque, algures na sua natural insegurança, sentiu o peso da tristeza que esse homem carregava, e pensou que talvez o pudesse ajudar. Não parava de se perguntar, por quantas vezes aquele tipo de incidente poderia ainda vir a acontecer-lhe. Para rematar a situação, ainda recebeu um “raspanete” do dono do consultório, um psicólogo com experiência e uns estupendos “cabelos brancos”, que ela agora invejava mais do que qualquer outra coisa: “Laura, o que aconteceu?”, atirou ele. “Nunca vi uma sessão durar tão pouco tempo!”.

Não quis saber como é que ela se sentia, como a poderia ajudar… nada. Estava apenas preocupado com a perda de um cliente por culpa dela.

Eram quatro da tarde. Não havia mais clientes para Laura. Por isso, a ela só lhe restava uma coisa a fazer: perder-se numa qualquer livraria (tentando envelhecer um pouco), dando de “comer” aos seus neurónios assustados.

Apaixonada pelo Chiado, aí passava horas entre livros velhos, novos, usados, esquecidos, raros e também velhos discos de vinil. Passava muito tempo a consultá-los pois o dinheiro que tinha era à conta para o quarto e as formações que fazia.

Nessa tarde, numa livraria recatada e escondida da Baixa, por entre letras e pensamentos, ouviu um: “Olá, outra vez!”. Ao virar-se, deu de caras com Tomás, o seu “cliente fugitivo”. Laura ficou muito tensa. Quando se enervava, engasgava-se com a própria saliva, consequentemente, teve um ataque de tosse.

Ao mesmo tempo que tentava evitar sufocar, só pensava como seria bom desaparecer daquele lugar. Queria apenas que um buraco se abrisse aos seus pés, e desaparecer dali para fora. Perante o ar constrangido de Laura, Tomás ofereceu-lhe a sua garrafa de água que, dizia, ainda não ter sido aberta. Laura sabia que quando se tosse num momento daqueles, fica-se não cor-de-rosa, mas mais vermelha do que um tomate maduro. Tomás parecia achar aquilo delicioso.

Quando aquele “instante horroroso” terminou e Laura conseguiu respirar e articular palavra, desculpou-se, e começaram a falar:

– Que bom que já passou! Espero não a ter assustado assim tanto. Há pouco na clínica, não a quis ofender!

– Não se preocupe, não me ofendeu! Está tudo bem! Tenho a certeza de que irá encontrar a terapeuta certa. Tenho várias colegas que são ótimas profissionais!

– Sim, claro! Posso perguntar-lhe o que está a escolher para ler?

Laura tinha na mão um livro de Kafka, e acabara de ler uma das suas célebres frases: “Quando tudo parece terminado, surgem novas forças.”

Era curioso estar a ler Kafka naquela ocasião. Franz Kafka, foi um homem profundamente atormentado. Tímido, com severos problemas com o seu pai, era autoritário, frágil e inseguro, tendo encontrado na escrita uma forma de dar voz à sua dor.

Tentando dar um ar de mulher madura, Laura respondeu-lhe:

– Estou a “dar uma olhadela” neste exemplar de Kafka. Gosto muito dele.

Ele procurava a plenitude apesar de carregar uma profunda tristeza e desejar a morte. Encontro nos seus escritos ideias muito interessantes, que me ajudam tanto na minha vida como na minha profissão.

Tomás estava cada vez mais curioso e interessado em conhecer melhor a jovem mulher. Na realidade, a diferença de idades não era nada de especial. Tomás sentia-se com mais de 50. Laura tinha mesmo os 24.

– Sei que isto lhe pode parecer estranho, mas gostava de lhe oferecer um café ou um chá. Sinto que a fiz passar um mau bocado, e não me queria sentir pior do que já estou. Como deve calcular, se fui à clínica onde trabalha, é porque não estou a atravessar o melhor período da minha vida. Aceita? Prometo que não a vou tratar mal!

Tomás disse isto com um sorriso que a desarmou por completo. Agora, ela tanto queria sair dali a correr, como gostaria de ser engolida pela terra. Mas nem a terra se abria, nem as pernas respondiam. Ainda pensou em dizer que não. Mas da sua boca saiu simplesmente um: “sim, pode ser!”

Pura incongruência feminina, acerca da qual muito se tem falado, descorrido, escrito.

O chá durou duas horas e meia, e o bom senso masculino avançou:

– Não gostaria de comer alguma coisa, talvez jantar? A não ser que tenha o seu namorado ou marido e filhos à espera…

Laura estava estupefacta consigo própria, e com a sua disposição em querer ficar ali. Em geral, achava a maior parte dos homens infantis, e do seu passado recente fazia parte uma triste lista de amores platónicos. Nenhum dos seus namoros tinha durado mais do que três meses. Ela sonhava com grandes conversas sobre a vida, a filosofia e o universo, eles estavam interessados em algo mais “prático e carnal”.

Laura morria de medo dessa intimidade, e as suas poucas experiências, tinham sido fortuitas e pouco românticas.

Agora, ali estava ela, frente a um homem que como paciente lhe “tinha dado com os pés”, mas que, com homem estava interessado em conhecê-la.

Estranha a vida.

Desse chá e desse jantar, surgiram muito encontros em livrarias, trocas de livros, mais chás, mais jantares, mais Kafka, Pessoa, Jung…Abraços, beijos, muito riso, muita paixão, poucas dúvidas e uma enorme vontade de tudo partilhar.

Há 20 anos que estão juntos.

Laura sente que tem os três tipos de amor pelo seu companheiro, embora os dois já tenham passado momentos muito difíceis.

Nesse dia em que voltava do consultório, era início de semana, segunda-feira.

Sabe que tem de se “reorganizar” o melhor possível para receber a família e deixar entrar em casa o seu melhor. Sabe que tem de conseguir que assim seja. Não é à toa que Laura tem o que considera ser “a melhor profissão do mundo”.

Aprende imenso, conhece histórias de vida fascinantes, pessoas dos mais variados quadrantes. Recebe e dá imenso afeto, enriquece a sua existência e sente que se torna melhor pessoa. E pode viver disto.

Em casa esperam-na os filhos. Sempre com imensas coisas para lhe dizer. Ela tem brigas para mediar, tarefas domésticas e organização da dinâmica familiar para resolver, e não falta sequer um vizinho ruidoso (mas que ela já conseguira que sorrisse um pouco) e, claro, Tomás, sempre desejoso que Laura chegue a casa. Os filhos cansam-no bastante. Ele adora-os, naturalmente, mas considera-os demasiado “mexidos”. Tomás aprecia o seu mundo de silêncio. Tem portanto alguma dificuldade, em não se deixar afetar pela agitação, apanágio da nova fase dos filhos, e das visitas “dos amigos dos miúdos”.

Durante essa semana tem necessidade de voltar a ler grandes romances da história da humanidade.

As histórias de amor sempre interessaram a homens e mulheres, mesmo que não o assumam de forma expressa.

Todas as histórias de amor, independentemente da cultura em que se desenvolvam, apresentam duas fases bem diferenciadas. A primeira vai do nascimento da paixão à consumação amorosa, e a literatura tem-se inspirado largamente nela. Muitas histórias lendárias de amor, acabam com o trágico destino dos amantes: Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Orfeu e Eurídice. Muitas dessas histórias, provêm da tradição oral, tendo ficado no inconsciente coletivo “amor passional só pode acabar mal.”

É nesta linha de pensamento, que se inscrevem as curiosas expressões utilizadas para dizer que alguém está apaixonado. Aparentemente, estamos perante uma catástrofe:

Castelhano - flechazo

Inglês - fall in love

Francês - coup de foudre

Português – cair de quatro

Ser atravessado, cair, perder a verticalidade.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia “el enamoramento es una enfermedad de la atencion.” O enamoramento é uma doença, uma alteração patológica da capacidade de estar atento”.

A pessoa apaixonada sente-se frágil e vulnerável, necessitada de algo, espera a inigualável felicidade, que só pode obter, com o olhar do amado ou amada.

Daí que todas as línguas e culturas se socorram de palavras de incrível adoração como “minha deusa”, “meu príncipe”, “meu tudo”, “minha vida”. Isto acontece no início da relação. E uma grande parte deste “fall in love” não é correspondido, o que permite várias possibilidades literárias e narrativas de atos heróicos, convicção, sedução, rebeldia (ir contras as normas) arriscar a vida, a raça, a vida…contra ventos e marés.

Por outro lado, nos contos de fadas, a heroína está na torre, afastada do mundo, pura e virginal, quase sem contacto com a realidade (Cinderela, Rapunzel, Branca de Neve, Bela Adormecida). O herói tem de ser rico, de boas famílias, príncipe, guerreiro exímio, capaz de matar um dragão do tamanho de um tiranossauro rex, ou acabar com um exército de entidades maléficas.

Na Mitologia Grega, a tragédia está quase sempre garantida. Uma das poucas histórias de amor com um final feliz, é a de Cupido (conhecido numa primeira fase como Eros) e da Princesa Psique. Esta é invejada pela própria Vénus, que elabora um plano para a castigar pela sua beleza. Depois de muitas peripécias, tentativas de assalto, suicídio e, por fim compaixão, Zeus transforma Psique em imortal e casa-a com o seu apaixonado Cúpido, no Olimpo, com grande pompa e circunstância. E eles foram felizes para sempre. Assim dizem!

O que acontece depois do casamento, da consumação do Amor é outra história. Esse é o trabalho de Laura enquanto terapeuta de casal: o depois.

Para nos sentirmos vivos, desejamos viver experiências excitantes, confundindo muitas vezes qualidade com intensidade.

A verdade, é que nem tudo o que é intenso tem qualidade. Às vezes, pode ser até bem patológico.

Por isso, na nossa cultura, e particularmente nos dias que correm, continuamos a ter o mesmo de sempre: amor platónico, adúltero, impossível, leal até à morte, escondido, louco…