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HarperCollins 200 anos. Desde 1817.

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

A filha do pântano

Título original: The Marsh King’s Daughter

© 2017 by K Dionne Enterprises L.L.C.

Published by arrangement with Folio Literary Management, LLC and International Editors’ Co.

© 2017, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutora: Filipa Velosa

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Desenho da capa: CalderónStudio

 

ISBN: 978-84-9139-141-8

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatória

Cita

Helena

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Agradecimentos

 

 

Para o Roger, por tudo.

 

 

Ser fecundo provoca a nossa queda; aquando da ascensão da geração seguinte, a anterior ultrapassou o seu apogeu. Os nossos descendentes tornam-se os nossos mais perigosos inimigos, para os quais não estamos preparados. Eles sobreviverão e arrebatar-nos-ão o poder das mãos enfraquecidas.

CARL GUSTAV JUNG

 

 

Do seu ninho, no alto do telhado do castelo Viking, a cegonha conseguia ver um pequeno lago e um tronco de amieiro que jazia junto aos juncos e às margens verdes. Sobre a árvore, três cisnes batiam as asas e olhavam em redor.

Um deles desembaraçou-se da plumagem e a cegonha reconheceu uma princesa do Egito. A cegonha ouviu-a dizer aos outros dois que cuidassem bem da plumagem de cisne enquanto ela mergulhava nas águas profundas para colher as flores que imaginou ter visto.

Os outros assentiram com a cabeça, pegaram no vestido de penas e voaram para longe com a plumagem de cisne.

— Mergulha agora! — gritaram. — Jamais voltarás a voar com a plumagem de cisne, jamais voltarás a ver o Egito; será aqui, no pântano, que permanecerás. — Dito isto, rasgaram a plumagem de cisne em mil pedaços. As plumas esvoaçaram quais flocos de neve e, então, as duas princesas traiçoeiras voaram para longe.

A princesa chorou e lamentou-se em voz alta; as suas lágrimas humedeceram o tronco do amieiro, que, na verdade, não era um tronco de amieiro, mas o Rei do Pântano em pessoa, aquele que vive e reina nos terrenos pantanosos. O tronco da árvore tornou-se redondo, e já não era uma árvore, enquanto ramos longos e pegajosos se esticavam a partir dele como braços.

A pobre criança ficou terrivelmente assustada e fez tenção de fugir. Correu para atravessar o terreno verde e lodoso, mas rapidamente se afundou, perseguida pelo tronco do amieiro. Grandes bolhas negras ergueram-se do lodo e, com elas se esfumaram quaisquer vestígios da princesa.

 

Hans Christian Andersen,

A FILHA DO REI DO PÂNTANO

Helena

 

Se vos dissesse o nome da minha mãe, reconhecê-lo-iam imediatamente. A minha mãe era famosa, embora nunca tivesse desejado sê-lo. A sua fama não era o género de fama que alguém quisesse ter. Jaycee Dugard, Amanda Berry, Elizabeth Smart: esse tipo de coisa, embora a minha mãe não fosse nenhuma delas.

Reconheceriam o nome da minha mãe se vo-lo dissesse e depois interrogar-se-iam (brevemente, porque os anos em que as pessoas se interessavam pela minha mãe foram-se há muito, tal como ela): onde estará agora? E não teve uma filha enquanto estava desaparecida? E o que foi feito da menina?

Podia contar-vos que tinha doze anos e a minha mãe vinte e oito quando nos resgataram do seu raptor, e que passei esses anos no que os jornais descrevem como uma quinta degradada, rodeada por um pântano, no meio da Península Superior do Michigan. Durante esse tempo, aprendi a ler graças a uma pilha de revistas da National Geographic dos anos cinquenta e a uma edição amarelecida da coletânea de poemas de Robert Frost, nunca fui à escola, nunca andei de bicicleta, nunca soube o que era eletricidade ou água canalizada. Que as únicas pessoas com quem falei durante esses doze anos foram a minha mãe e o meu pai. Que só soube que éramos prisioneiras quando deixámos de o ser.

Podia contar-vos que a minha mãe faleceu há dois anos e que, muito embora os meios de comunicação tenham difundido a sua morte, é provável que vos tenha passado ao lado, porque faleceu durante um ciclo noticioso repleto de histórias mais importantes. Posso dizer-vos o que os jornais não disseram: ela nunca se recuperou dos anos de cativeiro; não foi uma bonita, eloquente e expansiva representante da causa; a minha tímida e apagada ruína de mãe não assinou nenhum contrato para escrever um livro, não teve direito de ser capa da Time. A minha mãe encolheu-se para evitar a atenção da mesma forma que as folhas de araruta definham após uma geada.

Mas não vos direi o nome da minha mãe. Porque esta não é a história dela. É a minha.

1

 

— Espera aqui — digo à minha filha de três anos. Debruço-me através da janela aberta da carrinha para procurar, entre a cadeirinha de bebé e a porta do passageiro, o copo de plástico antifugas com sumo de laranja morno que ela arremessou num ataque de frustração. — A mamã já volta.

A Mari estica-se para pegar no copo como o cãozinho de Pavlov. Faz beicinho e as lágrimas caem-lhe. Eu apanho-o. Está cansada. Eu também estou.

— Uh, uh, uh — resmunga a Mari quando começo a afastar-me. Arqueia as costas e empurra o cinto de segurança como se fosse um colete de forças.

— Está quieta, eu volto já. — Semicerro os olhos e abano o dedo para que saiba que estou a falar a sério e dou a volta até à parte de trás da carrinha. Aceno ao rapaz que empilha caixas na plataforma de carga junto à entrada de serviço da Markham’s (acho que se chama Jason), depois abro a parte traseira da carrinha para agarrar nas minhas primeiras duas caixas.

— Olá, Sra. Pelletier! — O Jason devolve o meu aceno com o dobro do entusiasmo que lhe mostrei. Levanto novamente a mão para ficarmos quites. Já desisti de lhe pedir que me trate por Helena.

Pum-pum-pum do interior da carrinha. A Mari está a bater com o copo de sumo contra o parapeito da janela. Calculo que esteja vazio. Bato com a palma da mão contra a caixa aberta da carrinha em resposta (pum-pum-pum) e a Mari sobressalta-se e vira-se para trás, com o cabelo fino de bebé a bater-lhe na cara como barbas de milho. Faço-lhe a minha melhor expressão carrancuda de «para com isso ou vais ver o que é bom para a tosse», depois levanto as caixas de cartão e coloco-as ao ombro. Eu e o Stephen temos, ambos, os olhos e o cabelo castanhos, tal como a nossa filha de cinco anos, a Iris, portanto ele ficou maravilhado com esta invulgar criança dourada que criámos, até eu lhe ter dito que a minha mãe era loura. É tudo o que sabe.

A Markham’s é a penúltima entrega de quatro e o principal ponto de venda das minhas compotas e geleias, para além das encomendas que recebo online. Os turistas que fazem compras na Markham’s Grocery apreciam a ideia de os meus produtos serem elaborados localmente. Disseram-me que muitos clientes compram vários frascos para levar para casa como prenda ou recordação. Prendo círculos de tecido axadrezado sobre as tampas com cordel de merceeiro e uso um código de cores de acordo com o conteúdo: vermelho para compota de framboesa, roxo para bagas de sabugueiro, azul para mirtilo, verde para geleia de tabua e mirtilo, amarelo para dente-de-leão, cor-de-rosa para maçã silvestre e cereja silvestre, estão a ver a ideia. Acho que as tampas têm um aspeto pateta, mas as pessoas parecem gostar delas. E, se quiser sobreviver numa zona tão deprimida economicamente como a Península Superior, tenho de dar às pessoas o que elas querem. Não é necessário ser um génio para chegar a essa conclusão.

Há muitos alimentos silvestres que poderia utilizar e muitas formas diferentes de os misturar, mas, por agora, fico-me pelas compotas e geleias. Qualquer negócio precisa de um foco. A minha imagem de marca é o desenho estilizado da planta de tabua que ponho em cada rótulo. Tenho praticamente a certeza de que sou a única pessoa que mistura raiz de tabua moída com mirtilos para fazer geleia. Não adiciono muito, apenas o suficiente para justificar a inclusão de tabua no nome. Quando era pequena, as espigas jovens de tabua eram o meu vegetal preferido. Ainda são. Todas as primaveras, atiro as botas altas de pesca e um cesto de vime para a caixa aberta da carrinha e dirijo-me para os pântanos que ficam a sul da nossa casa. O Stephen e as miúdas não lhes tocam, mas o Stephen não se importa de que as cozinhe, desde que prepare apenas o suficiente para mim. Se se ferverem as espigas durante alguns minutos em água salgada, obtém-se um dos melhores vegetais que há. A textura é um pouco seca e farinhenta, portanto, agora como-as com manteiga, mas claro, quando era criança nunca tinha provado manteiga.

Apanho os mirtilos nas zonas onde as árvores foram abatidas, a sul da nossa casa. Nalguns anos a colheita de mirtilos é melhor do que noutros. Os mirtilos gostam de muito sol. Os índios costumavam incendiar a vegetação rasteira para melhorar a produção. Admito, já me senti tentada. Não sou a única pessoa que deambula pelas planícies durante a época do mirtilo, portanto, nas zonas mais próximas das antigas estradas dos madeireiros, a colheita esgota-se bastante depressa. Mas não me importo de me afastar dos caminhos mais utilizados e nunca me perco. Uma vez, estava tão longe, no meio do nada, que um helicóptero do Departamento de Recursos Naturais me viu e me fez sinal para que parasse. Depois de ter convencido os agentes de que sabia onde estava e o que estava a fazer, deixaram-me em paz.

— Está calor suficiente para si? — pergunta o Jason, enquanto se baixa para tirar a primeira caixa do meu ombro.

Faço um grunhido em jeito de resposta. Houve uma altura em que não faria a mínima ideia de como responder a uma pergunta assim. A minha opinião sobre o tempo não vai fazer com que ele mude, logo, porque é que alguém se há de importar com o que penso? Agora, sei que não tenho de responder, que isto é um exemplo daquilo a que o Stephen chama «conversa fiada», conversar por conversar, um preenchimento de espaço que não pretende comunicar nada importante ou com valor. Que é a forma como pessoas que não se conhecem bem falam umas com as outras. Ainda não percebo bem de que forma é que isto é melhor do que o silêncio.

O Jason ri-se como se lhe tivesse contado a melhor piada que ouviu em todo o dia, algo que o Stephen também insiste ser uma resposta apropriada, sendo irrelevante que eu não tenha dito nada de engraçado. Depois de ter deixado o pântano, tive muita dificuldade com as convenções sociais. Aperta a mão de uma pessoa quando a conheces. Não metas o dedo no nariz. Vai para o final da fila. Espera pela tua vez. Levanta a mão quando tiveres uma questão na aula e depois espera que o professor te dê autorização para a colocares. Não arrotes nem soltes gases diante das outras pessoas. Quando fores convidada para casa de alguém, pede autorização antes de usares a casa de banho. Lembra-te de lavar as mãos e puxar o autoclismo quando o fizeres. Não consigo dizer-vos quantas vezes senti que toda a gente sabia a forma correta de fazer as coisas exceto eu. Em todo o caso, quem é que faz estas regras estúpidas? E por que motivo tenho de respeitá-las? E quais serão as consequências se não o fizer?

Deixo a segunda caixa no cais de carga e volto à carrinha para ir buscar a terceira. Três caixas, vinte e quatro frascos em cada, setenta e dois frascos no total, entregues de duas em duas semanas durante junho, julho e agosto. O meu lucro em cada caixa é de $59,88, o que significa que, durante o verão, faço mais de mil dólares só com a Markham’s. Não é de desprezar.

E sobre o facto de deixar a Mari sozinha na carrinha enquanto faço as entregas, sei o que as pessoas pensariam se soubessem. Especialmente sobre deixá-la sozinha com as janelas abertas. Mas não estou disposta a arriscar-me a deixar as janelas fechadas. Estou estacionada debaixo de um pinheiro e há uma brisa que sopra da baía, mas a temperatura tem estado quase nos trinta graus ao longo de todo o dia e sei como um carro se pode tornar rapidamente num forno.

Também tenho consciência de que alguém poderia facilmente debruçar-se através da janela aberta e levar a Mari, se quisesse. Mas decidi, há anos, que não vou criar as minhas filhas para temerem que o que aconteceu à minha mãe lhes possa acontecer a elas.

Uma última palavra sobre este assunto e depois termino. Garanto-vos que se alguém tem algum problema com a forma como crio as minhas filhas é porque nunca viveu na Península Superior do Michigan. Tenho dito.

 

 

De volta à carrinha, a Mari, uma verdadeira especialista na arte da fuga, desapareceu de vista. Vou até à janela do passageiro e olho lá para dentro. A Mari está sentada no chão a mascar, como se fosse pastilha elástica, o papel de celofane de um rebuçado que encontrou debaixo do banco. Abro a porta, tiro-lhe o papel da boca e enfio-o no bolso, depois seco os dedos nas calças de ganga e volto a prendê-la na cadeirinha. Uma borboleta esvoaça através da janela e aterra numa mancha de qualquer coisa pegajosa no tabliê. A Mari bate palmas e ri-se. Eu faço um sorriso rasgado. É impossível não o fazer. O riso da Mari é delicioso, uma gargalhada poderosa e natural que nunca me canso de ouvir. Como aqueles vídeos que as pessoas publicam no YouTube de bebés a rirem descontroladamente de coisas insignificantes, como um cão a saltar ou uma pessoa a rasgar tiras de papel: o riso da Mari é assim. A Mari é água com gás, sol dourado, o grasnar de patos-carolinos no céu.

Enxoto a borboleta e ponho a carrinha a trabalhar. O autocarro da Iris deixa-a na nossa casa a um quarto para as cinco. Normalmente, o Stephen toma conta das miúdas enquanto faço as minhas entregas, mas esta noite vai chegar tarde porque tem de mostrar um novo conjunto de provas fotográficas de faróis ao dono da galeria a quem vende as suas fotografias, no Soo. Sault Ste. Marie, que se pronuncia «Soo» e não «Salt», como diz muitas vezes quem não sabe, é a segunda maior cidade da Península Superior. Mas isso não quer dizer grande coisa. A cidade-irmã, no lado canadiano, é muito maior. Os habitantes de ambos os lados do rio de St. Mary chamam à sua cidade «O Soo». Vêm pessoas de todo o mundo visitar as Comportas do Soo e observar os gigantescos transportadores de minério de ferro a atravessá-las. São uma enorme atração turística.

Entrego a última caixa de compotas variadas na loja do Gitche Gumee Agate and History Museum, depois conduzo até ao lago e estaciono. Assim que a Mari vê a água, começa a agitar os braços:

— Águ-águ, águ-águ.

Sei que, com a sua idade, já devia dizer frases completas. Há um ano que a levamos, uma vez por mês, a um especialista em desenvolvimento infantil, em Marquette, mas até agora, isto é o melhor que consegue fazer.

Passamos a hora seguinte na praia. A Mari senta-se ao meu lado na gravilha quente da praia e livra-se do desconforto de um molar a nascer mascando um pedaço de madeira que limpei para ela na água. O ar está quente e parado, o lago calmo, com as ondas a rebentarem suavemente como água numa banheira. Depois de algum tempo, descalçamos as sandálias e caminhamos para dentro de água, salpicando-nos uma à outra para refrescar. O Lago Superior é o maior e mais profundo dos Grandes Lagos, portanto a água nunca fica quente. Mas, num dia como o de hoje, quem iria querer que ficasse?

Encosto-me para trás sobre os cotovelos. As pedras estão quentes. Com o calor que está hoje, é difícil acreditar que, quando eu e o Stephen trouxemos a Iris e a Mari a este mesmo local, há duas semanas, para ver a chuva de meteoros Perseidas, precisámos de sacos-cama e casacos. O Stephen achou um exagero quando os arrumei na parte de trás do Cherokee, mas, obviamente, ele não fazia ideia de como arrefece na praia depois do pôr do sol. Apertámo-nos os quatro dentro de um saco-cama duplo e deitámo-nos, com as costas na areia, a olhar para cima. A Iris contou vinte e três estrelas cadentes e pediu um desejo com cada uma, embora a Mari tenha dormitado ao longo da maior parte do espetáculo. Voltaremos daqui a duas semanas para ver a aurora boreal.

Endireito-me e olho para o relógio. Continua a ser difícil para mim estar nalgum sítio à hora certa. Quando uma pessoa é criada no campo como eu fui, o campo dita o que se faz e quando. Nunca tivemos relógio. Não havia motivo para tal. Estávamos tão sintonizados com o nosso ambiente quanto os pássaros, os insetos e os animais, guiados pelos mesmos ritmos circadianos. As minhas memórias estão ligadas às estações. Nem sempre consigo recordar que idade tinha quando determinado acontecimento teve lugar, mas lembro-me da época do ano em que aconteceu.

Agora, sei que, para a maioria das pessoas, o ano civil começa a 1 de janeiro. Mas, no pântano, não havia nada no mês de janeiro que o distinguisse de dezembro, ou de fevereiro, ou de março. O nosso ano começava na primavera, no primeiro dia em que os malmequeres-dos-brejos desabrochavam. Os malmequeres-dos-brejos são plantas frondosas enormes, com uns sessenta centímetros ou mais de diâmetro, cobertas de centenas de flores de um amarelo vivo com alguns centímetros de largura. Há outras flores que desabrocham na primavera, como os lírios roxos e os rebentos das gramíneas, mas os malmequeres-dos-brejos são tão prolíferos que nada se compara àquele impressionante tapete amarelo. Todos os anos, o meu pai pegava nas botas altas de pesca, ia para o pântano e desenterrava uma planta. Colocava-a numa velha banheira de aço galvanizado semicheia de água e instalava-a no nosso alpendre das traseiras, onde brilhava como se ele nos tivesse trazido o sol.

Costumava desejar que o meu nome fosse Malmequer[1]. Mas tenho de me contentar com Helena, que explico muitas vezes pronunciar-se «Hel-LAI-na». Tal como muitas outras coisas, foi uma escolha do meu pai.

 

 

O céu reveste-se de um aspeto de final de tarde que avisa que chegou o momento de nos irmos embora. Olho para as horas e descubro, para meu horror, que o meu relógio interno não acompanhou o ritmo do relógio de pulso. Pego na Mari e nas nossas sandálias e corro para a carrinha. A Mari berra enquanto lhe aperto o cinto de segurança. Não discordo do seu protesto. Também gostaria de ter ficado mais tempo. Apresso-me a dar a volta até ao lado do condutor e giro a chave. O relógio do tabliê marca 4:37. Talvez consiga chegar a tempo. Por um triz.

Arranco velozmente do estacionamento e conduzo para sul pela M-77 tão depressa quanto me atrevo. Não há muitos carros da polícia na zona, mas, para os agentes que patrulham esta estrada, para além de multarem os condutores por excesso de velocidade, não têm muito que fazer. Apercebo-me da ironia da situação. Vou em excesso de velocidade porque estou atrasada. Ser parada por conduzir demasiado depressa vai fazer com que me atrase ainda mais.

A Mari desata numa birra completa enquanto conduzo. Bate com os pés, a areia voa por toda a carrinha, o copo antifugas faz ricochete no para-brisas e o ranho escorre-lhe pelo nariz. A Menina Malmequer Pelletier definitivamente não está feliz. Neste momento, eu também não.

Sintonizo o rádio na emissora pública da Universidade do Norte de Michigan, em Marquette, na esperança de que a música a distraia (ou a abafe). Não sou fã de música clássica, mas esta é a única estação que se ouve bem.

Em vez disso, apanho um alerta noticioso:… fugitivoraptor de criançasMarquette

— Está calada — grito, e aumento o volume.

Refúgio Nacional da Vida Selvagem de Seneyarmado e perigosonão o aborde. Inicialmente, é só isso que consigo perceber.

Preciso de ouvir mais. O refúgio fica a menos de cinquenta quilómetros da nossa casa.

— Mari, para!

A Mari pestaneja até ficar em silêncio. O comunicado repete:

Uma vez mais, a polícia estatal informa que um presidiário condenado a prisão perpétua sem liberdade condicional por rapto de menores, violação e homicídio fugiu da prisão de segurança máxima de Marquette, no Michigan. O presidiário terá assassinado dois guardas quando estava a ser transferido para a prisão e fugido para o Refúgio Nacional da Vida Selvagem de Seney a sul da M-28. NÃO o aborde, repetimos, NÃO o aborde. Se observar algo suspeito, entre imediatamente em contacto com as autoridades. O presidiário, Jacob Holbrook, foi condenado pelo rapto de uma jovem que manteve em cativeiro durante doze anos, num caso de grande notoriedade que mereceu a atenção de todo o país

O meu coração para. Não consigo ver. Não consigo respirar. Não consigo ouvir nada sobre o som do sangue a fluir nos meus ouvidos. Diminuo a velocidade e encosto cuidadosamente na berma. A minha mão treme enquanto a estico para desligar o rádio.

O Jacob Holbrook fugiu da prisão. O Rei do Pântano. O meu pai.

E ainda por cima fui eu quem o pôs na prisão.

 

 


[1] «Marigold» no original. (N.T.)

2

 

Volto à estrada, deixando para trás uma nuvem de pó. Duvido que alguém esteja a patrulhar este troço da autoestrada, tendo em conta tudo o que está a acontecer cinquenta quilómetros a sul e, mesmo que esteja, ser parada por excesso de velocidade é agora a menor das minhas preocupações. Tenho de chegar a casa, tenho de ter as minhas duas filhas debaixo de olho, tenho de saber que estão comigo e que estão seguras. De acordo com o alerta noticioso, o meu pai está a dirigir-se para longe da minha casa e para o interior do refúgio da vida selvagem. Só que eu sei que não está. O Jacob Holbrook que eu conheço nunca seria tão óbvio. Aposto qualquer quantia de dinheiro que, depois de uns três quilómetros, a equipa de busca vai perder o seu rasto, se é que já não o perdeu. O meu pai é capaz de atravessar o pântano como um espírito. Não deixaria um rasto para que a equipa de busca o seguisse a não ser que quisesse ser seguido. Se o meu pai quer que as pessoas que andam à procura dele pensem que está no refúgio da vida selvagem, então não o vão procurar no pântano.

Aperto o volante. Imagino o meu pai à espreita entre as árvores, enquanto a Iris sai do autocarro e começa a subir o caminho até à nossa casa, e carrego com mais força no acelerador. Vejo-o a saltar de trás das árvores e a agarrá-la assim que o condutor arrancar, da mesma forma que costumava pular dos arbustos quando eu saía da casa de banho exterior para me assustar. O meu temor pela segurança da Iris não é lógico. De acordo com o alerta noticioso, o meu pai fugiu entre as quatro e as quatro e um quarto e são agora cinco menos um quarto; é impossível que tenha viajado cinquenta quilómetros a pé em meia hora. Mas isso não torna o meu medo menos real.

O meu pai e eu não falamos há quinze anos. O mais provável é que ele não saiba que mudei de apelido quando fiz dezoito anos porque não aguentava mais ser conhecida apenas pelas circunstâncias em que cresci. Ou que, quando os seus pais faleceram, há oito anos, me deixaram a sua propriedade em testamento. Ou que usei a maior parte da herança para arrasar a casa onde ele cresceu e que instalei no terreno uma casa móvel. Ou que agora vivo aqui com o meu marido e duas filhas pequenas. As netas do meu pai.

Mas talvez saiba. Depois de hoje, tudo é possível. Porque, hoje, o meu pai fugiu da prisão.

 

 

Estou um minuto atrasada. Decididamente não mais de dois. Estou encurralada atrás do autocarro escolar da Iris com a ainda guinchante Mari. A Mari está num estado tal que duvido que se lembre do que o originou. Não posso ultrapassar o autocarro, contornando-o e entrando no caminho para a nossa casa, porque o sinal de STOP está esticado e as luzes vermelhas estão a piscar. É irrelevante que o meu seja o único veículo na autoestrada para além do autocarro e que a criança que o condutor está a deixar seja a minha filha. Como se eu pudesse atropelar acidentalmente a minha própria filha.

A Iris sai do autocarro. Consigo ver pela forma desalentada como sobe penosamente o caminho vazio até à nossa casa que pensa que me esqueci novamente de chegar a casa a horas para a receber.

— Olha, Mari. — Aponto. — Olha a nossa casa. Olha a mana. Chiiiu. Estamos mesmo a chegar.

A Mari segue o meu dedo e, quando vê a irmã, cala-se imediatamente. Soluça. Sorri.

— Iris! — Nem «I-I», nem «I-Ma» nem «mana», nem mesmo «I-uis», mas «Iris», claro como a água. Vá-se lá entender.

Finalmente, o condutor decide que a Iris está suficientemente longe da autoestrada para desligar as luzes de prudência e a porta fecha-se com um assobio. No preciso segundo em que o autocarro começa a mover-se, viro rapidamente para o caminho de acesso à nossa casa e estaciono. Os ombros da Iris endireitam-se. Acena, sorri, radiante. A mamã está em casa e o mundo dela volta a encarrilar-se. Quem me dera poder dizer o mesmo do meu.

Desligo o motor e dou a volta até ao lado do passageiro para apertar as sandálias da Mari. Assim que os seus pés tocam no chão, sai disparada, atravessando a correr o jardim em frente da casa.

— Mamã! — A Iris corre para mim e abraça-me as pernas. — Pensava que não estavas cá. — Diz isto não como uma acusação, mas como a constatação de um facto. Esta não é a primeira vez que desiludo a minha filha. Quem me dera poder prometer-lhe que será a última.

— Está tudo bem. — Aperto-lhe o ombro e dou-lhe uma palmadinha no cocuruto. O Stephen está sempre a dizer-me que devia abraçar mais as nossas filhas, mas o contacto físico é difícil para mim. A psiquiatra que o tribunal me atribuiu depois de eu e a minha mãe termos sido resgatadas disse que eu tinha problemas de confiança e obrigou-me a fazer exercícios para recuperar a mesma, como fechar os olhos, cruzar os braços sobre o peito e deixar-me cair para trás, sem nada para me agarrar exceto a sua promessa. Quando resisti, ela disse que eu estava a ser beligerante. Mas eu não tinha problemas de confiança. Simplesmente, achava que os exercícios eram estúpidos.

A Iris solta-me e corre atrás da irmã para dentro de casa. A casa não está trancada. Nunca está. As pessoas do Sul do Estado que são proprietárias das grandes casas de verão na falésia, com vista para a baía, mantêm as casas trancadas e com as persianas fechadas, mas nós, os restantes, nunca nos damos a esse trabalho. Se um ladrão tivesse de escolher entre uma mansão isolada e sem ninguém, cheia de aparelhos eletrónicos caros, e uma casa móvel à vista da autoestrada, todos sabemos qual escolheria.

Mas, agora, tranco a porta de casa e dirijo-me para o jardim ao lado da casa para me assegurar de que o Rambo tem comida e água. O Rambo corre ao longo da corda que pendurámos entre dois pinheirose abana a cauda quando me vê. Não ladra porque o ensinei a não o fazer. O Rambo é um Plott Hound malhado, preto e castanho, com orelhas caídas e uma cauda como um chicote. Todos os outonos, costumava levar o Rambo comigo e com dois outros caçadores e respetivos cães para caçar ursos, mas tive de o reformar há dois invernos, depois de um urso se ter perdido e ter entrado no nosso quintal das traseiras, e ele ter decidido enfrentá-lo sozinho. Um combate entre um cão de vinte quilos e um urso-negro de duzentos e vinte e cinco não é um combate equilibrado, independentemente do que o cão achar. A maioria das pessoas não se apercebe imediatamente de que o Rambo tem apenas três pernas, mas, com um grau de incapacidade de vinte e cinco por cento, não estou disposta a levá-lo novamente para o campo. Depois de ter começado a perseguir veados no inverno passado por estar aborrecido, tivemos de começar a mantê-lo preso. Por aqui, um cão com a reputação de importunar veados pode ser imediatamente abatido a tiro.

— Temos bolachas? — grita a Iris da cozinha. Está à espera na mesa, pacientemente, com as costas direitas e as mãos unidas, enquanto a irmã procura migalhas no chão para comer. A professora da Iris deve adorá-la, mas esperem até ela conhecer a Mari. Não é a primeira vez que me interrogo como é que duas pessoas tão diferentes podem ter nascido dos mesmos pais. Se a Mari é fogo, a Iris é água. Uma seguidora e não uma líder; uma criança pacata e hipersensível, que prefere ler a correr, que adora os seus amigos imaginários tanto quanto eu, em tempos, adorei os meus e que leva a mais leve repreensão demasiado a peito. Detesto ter-lhe causado aquele momento de pânico. A Iris, a Bondosa, já me perdoou e esqueceu, mas eu não. Eu nunca esqueço.

Entro na despensa e tiro um pacote de bolachas da prateleira de cima. Sem dúvida que a minha pequena salteadora Viking, um dia, tentará trepá-la, mas a Iris, a Obediente, nunca pensaria em fazê-lo. Coloco quatro bolachas num prato, sirvo dois copos de leite e dirijo-me à casa de banho. Abro a torneira e borrifo a cara com uma mão cheia de água. Ao ver a minha expressão no espelho, apercebo-me de que tenho de me controlar. Assim que o Stephen chegar a casa, confesso-lhe tudo. Entretanto, não posso deixar que as minhas filhas percebam que há algo errado.

Depois de terminarem o leite e as bolachas, mando-as para o quarto para poder acompanhar as notícias sem que elas ouçam. A Mari é demasiado nova para entender o significado de termos como «fuga da prisão» ou «caça ao homem» ou «armado e perigoso», mas a Iris talvez entenda.

A CNN está a mostrar uma longa filmagem de um helicóptero a rasar as árvores. Estamos tão perto da área de busca que poderia praticamente ir lá para fora, colocar-me no alpendre na frente e ver o mesmo helicóptero. Um aviso da polícia estatal a passar no fundo do ecrã apela a que toda a gente permaneça dentro de casa. Fotografias dos guardas assassinados, fotografias da carrinha prisional vazia, entrevistas com as famílias enlutadas. Uma fotografia recente do meu pai. A vida na prisão não tem sido gentil. Fotografias da minha mãe quando era nova e já como uma mulher de rosto chupado. Fotografias da nossa cabana. Fotografias minhas com doze anos. Ainda não houve qualquer referência a Helena Pelletier, mas é uma questão de tempo.

A Iris e a Mari vêm a correr a passos miúdos pelo corredor. Tiro o som à televisão.

— Queremos ir brincar lá para fora — diz a Iris.

— Fora — ecoa a Mari. — Lá.

Pondero. Não há qualquer razão lógica para fazer as miúdas ficarem cá dentro. O espaço onde brincam está rodeado por uma cerca metálica com um metro e oitenta de altura e consigo ver toda a área da janela da cozinha. O Stephen instalou a cerca depois do incidente com o urso.

«Meninas dentro, animais fora», disse ele com satisfação quando os empreiteiros terminaram, limpando o pó das mãos na parte de trás das calças como se tivesse sido ele próprio a colocar os postes. Como se fosse assim tão simples manter os filhos em segurança.

— Está bem — digo eu. — Mas só durante uns minutos.

Abro a porta das traseiras e solto-as, depois pego numa embalagem de macarrão com queijo do armário e tiro uma alface e um pepino do frigorífico. O Stephen enviou uma mensagem há uma hora a dizer que está atrasado e que vai comer qualquer coisa pelo caminho, portanto é uma embalagem de macarrão com queijo para as miúdas e salada para mim. Não gosto mesmo nada de cozinhar. As pessoas podem achar isso estranho, tendo em conta como ganho a vida, mas uma pessoa tem de trabalhar com o que tem. Os mirtilos e os morangos cresciam na nossa cumeeira. Aprendi a fazer geleia e compota. Ponto final. Não há muitos trabalhos que exijam aptidões em pesca no gelo ou esfolamento de castores. Chegaria ao extremo de dizer que odeio cozinhar, mas ainda consigo ouvir a repreensão suave do meu pai: «Ódio é uma palavra muito forte, Helena».

Despejo a caixa de massa na panela de água a ferver com sal e espreito pela janela para ver como estão as miúdas. A quantidade de Barbies, Pequenos Póneis e princesas da Disney espalhados pela zona de brincar deixa-me doente. Como é que a Iris e a Mari poderão desenvolver qualidades como a paciência e o autocontrolo quando o Stephen lhes dá tudo o que querem? Quando era pequena, nem sequer tinha uma bola. Fazia os meus próprios brinquedos. Desfazer plantas de cavalinha e voltar a encaixar os pedaços era tão educativo como esses brinquedos em que os bebés têm de fazer corresponder formas a buracos. E, depois de uma refeição de espigas jovens de tabua, restava, no prato, um monte do que a minha mãe costumava dizer que pareciam agulhas de tricotar de plástico, mas, para mim, eram espadas. Espetava-as na areia em frente da porta das traseiras como se fossem as paliçadas de um forte onde os meus guerreiros feitos de pinhas travavam épicas batalhas.

Antes de os jornais de supermercado me terem feito cair no esquecimento, as pessoas costumavam perguntar-me qual era a coisa mais incrível/espantosa/inesperada que tinha descoberto depois de me ter juntado à civilização. Como se o mundo delas fosse muito melhor do que o meu. Ou fosse sequer civilizado. Poderia facilmente argumentar contra o uso legítimo dessa palavra para descrever o mundo que descobri depois dos doze anos: guerra, poluição, ganância, crime, crianças famintas, ódio racial, violência étnica, e isso só para começar. Era a Internet? (Incompreensível). A comida de plástico? (Um gosto facilmente adquirido). Os aviões? (Por favor: o meu conhecimento sobre a tecnologia ao longo dos anos cinquenta era sólido, e será que as pessoas pensam mesmo que nunca passaram aviões sobre a nossa cabana?). As viagens espaciais? (Admito que ainda tenho dificuldade com este assunto. A ideia de doze homens terem caminhado na lua continua a ser inconcebível para mim, embora tenha visto as gravações).

Queria sempre dar a volta à questão. Sabes dizer-me a diferença entre a grama, o junco e o capim? Sabes que plantas silvestres se podem comer e como as preparar? Consegues atingir um veado naquele pedaço de couro castanho por baixo do ombro, para que caia no local onde se encontra e não tenhas de passar o resto do dia a seguir-lhe o rasto? Consegues montar uma armadilha para um coelho? Consegues esfolar e limpar um coelho depois de o caçares? Consegues assá-lo numa fogueira para que a carne fique cozinhada no meio, enquanto o exterior fica deliciosamente tostado e estaladiço? Já agora, para começar, consegues acender uma fogueira sem fósforos?

Porém, aprendo depressa. Não demorei muito a perceber que as minhas habilidades eram seriamente menosprezadas pela maioria das pessoas. E, muito francamente, o mundo delas proporcionou-me algumas maravilhas tecnológicas bastante espantosas. O sistema de canalização das casas aparece nos lugares de topo dessa lista. Mesmo agora, quando lavo a louça ou preparo um banho para as miúdas, gosto de ficar com as mãos debaixo da corrente, embora tenha o cuidado de o fazer apenas quando o Stephen não está por perto. Poucos homens estariam dispostos a aceitar o facto de eu passar a noite sozinha na floresta em expedições à cata de alimentos, ou de ir à caça de ursos, ou de comer tabua. Não quero abusar.

Aqui está a resposta sincera: a descoberta mais espantosa que fiz depois de eu e a minha mãe termos sido resgatadas foi a eletricidade. É difícil entender, agora, como conseguimos viver todos aqueles anos sem ela. Observo as pessoas a carregarem despreocupadamente os seus tablets e telemóveis e a verem televisão e lerem livros eletrónicos até tarde, e parte de mim ainda fica maravilhada. Ninguém que tenha crescido com eletricidade pensa duas vezes em como seria viver sem ela, exceto nas raras ocasiões em que uma tempestade provoca um corte de energia, obrigando as pessoas a procurarem apressadamente velas e lanternas.

Imaginem o que é nunca ter energia. Não ter pequenos eletrodomésticos. Não ter frigorífico. Não ter máquina de lavar nem de secar. Não ter ferramentas elétricas. Levantávamo-nos quando clareava e íamos para a cama quando escurecia. Dias de dezasseis horas no verão, dias de oito horas no inverno. Com eletricidade, poderíamos ter ouvido música, poderíamos ter-nos refrescado com ventoinhas, aquecido os recantos mais frios dos quartos. Bombeado água do pântano. Poderia facilmente viver sem televisão e sem computadores. Abdicaria até do telemóvel. Mas, se há coisa de que sentiria falta se tivesse de viver sem ela agora seria a eletricidade, sem dúvida.

Ouço um grito vindo do quintal. Estico o pescoço. Nem sempre consigo perceber pelo tom dos gritos das minhas filhas se as suas emergências são triviais ou reais. Uma verdadeira emergência envolveria baldes de sangue a jorrarem de uma ou de ambas as miúdas ou um urso-negro a bisbilhotar em redor da cerca. Trivial seria a Iris agitar as mãos e gritar como se tivesse comido veneno para ratos, enquanto a Mari bate palmas e se ri.

— Abelha! Abelha! — Outra palavra que diz sem qualquer dificuldade.

Eu sei. É difícil acreditar que uma mulher que foi criada sob o que foram, indiscutivelmente, condições extremas de sobrevivência em território selvagem tenha produzido uma filha que tem medo de insetos, mas aí está. Desisti de levar a Iris comigo para o campo. A única coisa que faz é queixar-se do pó e dos cheiros. Até agora, estou a ter melhores resultados com a Mari. Não é suposto um progenitor preferir um filho em detrimento de outro, mas por vezes é difícil não o fazer.

Fico de pé junto à janela até que a abelha se retira sensatamente para um espaço aéreo mais calmo e as miúdas sossegam. Imagino o avô a observá-las do outro lado do jardim, por trás da fila de árvores. Uma menina loura, outra morena. Sei qual delas escolheria.

Abro a janela e chamo as miúdas para virem para dentro.