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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Pensamento intruso

Título original: La ordenada vida del doctor Alarcón

© 2018, Tadea Lizarbe

© 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Calderón Estudio

Imagem da capa: Shutterstock

1ª edição: Janeiro 2019

 

ISBN: 978-84-9139-292-7

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Dedicatoria

Notas 8 de Julho de 2013

1

Suspeita n.º 1

2

3

4

5

Suspeita n.º 2

6

7

8

Suspeito n.º 3

9

10

Suspeita n.º 4

11

12

13

14

15

16

Suspeita n.º 5

17

18

19

20

21

22

23

24

25

Suspeita n.º 6

26

27

28

29

30

Consulta n.º 1

31

32

Consulta n.º 2

33

Fim de semana no lago: sexta-feira

Fim de semana no lago: sábado

Fim de semana no lago: domingo

Consulta n.º 3

34

35

36

37

Suspeito n.º 7

38

Consulta n.º 4

39

40

41

42

Consulta n.º 5

43

Suspeito n.º 8

44

Consulta n.º 6

Irritante n.º 1

Irritante n.º 2

Irritante n.º 3

Consulta n.º 7

45

46

47

48

Consulta n.º 8

49

Consulta n.º 9

50

51

52

O interrogatório

Dedicatoria

 

 

 

 

 

Para a persistência teimosa, que se mantém extravagante

 

 

Para ti

 

 

 

 

 

PENSAMENTO INTRUSO: Diz-se daquele pensamento disruptivo e de origem inconsciente que, às vezes, invade o nosso consciente, com um efeito atroz consequente nas nossas decisões, condutas e estado anímico. É tão difícil de detetar como de erradicar, já que, no seu estado original, é invisível. Dada a sua natureza impulsiva, às vezes, manifesta-se de maneira fugaz para assinalar a sua influência feroz e nociva nas nossas histórias.

Notas 8 de Julho de 2013

 

 

 

 

 

O paciente mostra-se irritável. Não gosta de perder o controlo e muito menos de o outorgar a alguém como eu. Não cheguei a estabelecer o vínculo nem a confiança necessária para aprofundar o tratamento.

É extremamente inteligente e os historiais escolares assinalam um quociente intelectual de 160. Porém, não parece que a escola tenha sido uma experiência gratificante para ele. Passaram-no de ano duas vezes e não encaixou no novo círculo social. Citaram-se vários acontecimentos de agressão no arquivo escolar. O orientador fala do caráter retraído do menino e das suas dificuldades para socializar, para além de um desenvolvimento físico tardio, o que pode ter facilitado as agressões e humilhações que sofreu repetidamente.

Não fala de relações sociais significativas, porém, expressou a sua «necessidade de conseguir compreender melhor os outros». Pensa que as pessoas à sua volta são muito «mais parvas» do que ele, por isso, da sua perspetiva inteligente, nunca conseguirá compreender a lógica que impulsiona os outros. Considero que, na verdade, tem dificuldades para se relacionar e que as suas experiências sociais anteriores não foram bem-sucedidas. Não quer admitir as suas fraquezas nem a humilhação que deve ter sofrido na infância, esconde-se por trás de desculpas e de algo tangível, como o quociente intelectual. Considera que, assim, de forma objetiva, é melhor do que os outros.

Vive num mundo solitário. Construiu um lugar em que tudo o que acontece é meticulosamente planeado e está sob o seu controlo. Parte do princípio de que é muito inteligente e entende que isso garante o sucesso da rotina que decidiu usar. Uma vida onde a surpresa, os acontecimentos inesperados e a possibilidade de se expor ao ridículo ou à vergonha não têm espaço.

 

Usa as suas capacidades intelectuais para se defender de absolutamente tudo. Acha que ninguém pode tomar uma decisão melhor do que ele próprio, por isso, a confiança que projeta no seu intelecto poderia justificar qualquer ato. É o que mais me preocupa, dadas as mortes que estão a dar-se no círculo social do paciente.

 

Dr. Antonio Tenor

1

 

 

 

 

 

— Manuel? — Merda, agora não, estou atrasado! A minha vizinha, a senhora Bermejo, encontra-me no patamar. É tedioso, arrepiante e muito aborrecido rodear-me de pessoas como ela.

Apesar de querer fugir, vejo-me obrigado a responder com educação. Pensamento intruso: A minha mãe repetia-me constantemente que devia ser educado se quisesse sobreviver nesta sociedade. «Quando não encontrares paciência para compreender os outros, conta até três e sê respeitoso», dizia. Muito bem… Um. Dois. Três.

— Bom-dia, senhora Bermejo — cumprimento, forçando o sorriso.

Espero que a conversa acabe aqui, mas não. Claro que não. As pessoas têm sempre mais alguma estupidez para acrescentar.

— Vai trabalhar? — pergunta, como se não soubesse a resposta.

— Sim, estou um pouco atrasado. — Tenho de sair de cena de forma educada, subtil e rapidamente.

Ignoro a sua interrupção, desejando que acabe depressa, embora saiba muito bem que não será assim. Apresso o passo na descida pelas escadas numa tentativa de escapar.

— Manuel? — Foda-se, não me livro dela! Pela minha experiência, seguido do tom de voz que usou para dizer o meu nome, vem sempre um pedido e não costumo enganar-me: A senhora Bermejo quer alguma coisa minha. — Poderias fazer-me um favor? Sei que estás atrasado para o trabalho, mas é urgente.

Caí na armadilha. Não consegui escapar, portanto, se quiser acabar com isto o quanto antes, só me resta aceitar a questão e resolvê-la com urgência. Convido-a a falar.

— O meu filho não se sente bem, passou a noite com febre. Tem uma tosse horrível e cospe uns escarros esverdeados e grossos. Mas não é um verde esbranquiçado… Não, não… É um verde intenso com tons amarelados que… — Já chega, isto tem de acabar!

— Bom, então, vamos vê-lo! — Interrompo-a, antes de começar a fazer uma lista de cores que podem tingir um escarro.

Nem sequer sou o médico deste menino, porém, sou o desgraçado do vizinho e parece que isso dá à mamã o direito de interromper as minhas rotinas e incomodar-me com parvoíces. Existe um sistema de saúde, uma carteira de serviços e um protocolo de acesso. Pode ligar para o centro de saúde e marcar uma consulta como todos os outros. E, se não quiser, que estude medicina para tratar do filho e me deixe em paz de uma maldita vez.

 

 

Entro na casa com naturalidade, sei muito bem onde é o quarto do menino. Explorei-o milhões de vezes. Embora não me lembre do nome… Como era? Merda, odeio não me lembrar das coisas, não costuma acontecer-me e não gosto de parecer imbecil.

A senhora Bermejo está atrás de mim. É uma mulher robusta e ofegante que se mexe com agressividade. Costuma usar um avental com flores amarelas, cheira a empadão de batata acabado de fazer e usa o cabelo apanhado num coque caótico e apressado do qual se desprendem algumas madeixas desordenadas. E eu ODEIO a desordem e a «não retidão». A julgar pelo seu aspeto, parece que se eletrocutou há apenas um minuto. Tem sempre um olhar carinhoso e sorridente. Excessivamente agradável para o meu gosto… Tenho de admitir, a seu favor, que mantém a casa mais do que cuidada. O quarto do filho está impoluto, embora um quadro que pende da parede se desequilibre ligeiramente para a direita e, na minha opinião, devesse mudar a posição da secretária, pois não recebe luz suficiente e fica mesmo no meio da linha reta entre a porta e a janela. É por isso que a corrente de ar afeta este menino fraco, o faz adoecer e… ME FAZ CHEGAR ATRASADO AO TRABALHO!

— Querido, acorda, é o Manuel. Veio ver como estás. — A senhora Bermejo apresenta-me.

Com a quantidade de vezes que venho ver o seu filho doente, podia ter a decência de se dirigir a mim como «doutor Alarcón», já que essa é a minha utilidade nesta família: O médico de família que está sempre de guarda para eles.

O menino é de constituição magra, em contraste com a mãe que, quando o agarra pela mão, parece que o arrasta pelos ares. Deve ter cerca de nove anos. O cabelo castanho cola-se ao seu crânio como se a gravidade o empurrasse com mais força do que o habitual. Observa-me com os seus olhos enormes e aquela cara cheia de sardas.

Assim que o vejo, sei o que se passa: Uma constipação comum. A aborrecida constipação comum! Espirros, secreção nasal, dor de cabeça e de garganta, escarros, olhos chorosos e mal-estar geral. Também presenciamos o corrimento nasal. Asqueroso. Definiria um tórax aberto na sala de cirurgia, com a cavidade cheia sangue e as entranhas a descoberto como vibrante, atraente e poderoso. Mas um corrimento nasal… Isso é asqueroso. Não há outra possibilidade descritiva. Não sei porque raios não fiz caso à minha mãe e porque não me tornei cirurgião. Por que razão estúpida é que tenho de suportar constipações?

Apesar de poder diagnosticar a constipação a dois metros do menino, devo fingir que o examino rigorosamente. Foi uma coisa que aprendi com os anos. Habitualmente, quando chega um caso, sou capaz de o diagnosticar nos primeiros dois minutos de consulta. Contudo, se quiser que o paciente esteja de acordo com a minha conclusão, se quiser que confie nela e que pare de fazer perguntas e mais perguntas inúteis, tenho de fingir que penso tão lentamente como as pessoas comuns: Interpretar uma peça. Representar a minha deliberação de forma exagerada. E embora demore mais tempo a fingir que penso à frente do meu público e a chegar ao diagnóstico clínico, a experiência diz-me que, na verdade, é uma forma útil de fazer com que as consultas durem menos:

— Dói-te a cabeça? — pergunto.

— Sim.

Gosto bastante mais das crianças do que dos adultos, pois não costumam falar muito. Respeitam a autoridade das batas brancas e não falam pelos cotovelos. Dói ou não dói? A resposta é simples: Sim ou não. Não preciso de saber mais. E não preciso que os pacientes me falem das suas vidas e, no pior dos casos, das suas especulações em relação ao diagnóstico.

— Vamos ver, abre a boca. Estou a ver, sim… Tem alguma vermelhidão.

— Muita? — quer saber a mãe.

Disse: «Alguma.» O que não entende na palavra «alguma»?

— Não. Muita, não. — Observo-a, entre surpreendido e enojado com a sua compreensão nula.

Ponho a mão na testa do menino e observo o canal auditivo. Bela peça de teatro. Não preciso de fazer nada disto. Como disse, é melhor convencer a mãe de que o meu trabalho é escrupuloso ou continuará com as suas perguntas incessantes e nunca mais conseguirei ir trabalhar.

A única coisa que não encaixa no meu diagnóstico é a febre, se estivesse presente, pensaria que era uma gripe, mas tenho a certeza de que não é. A parte mais odiosa do meu trabalho é ter de fazer perguntas aos pacientes e ter de confiar nas suas declarações.

— Disse que passou a noite com febre?

— Sim e não havia forma de a baixar — explica a senhora Bermejo, esfregando as mãos gordas e olhando para a cama com preocupação.

— Quanta febre?

— 37,3 °C. — Meu Deus! Isso não é febre!

O Departamento de Saúde Pública devia ter um orçamento para a prevenção. Não só para procurar hábitos saudáveis ou para criar métodos de diagnóstico precoce, como devia usar os seus esforços para informar as pessoas, educar, ensinar e prevenir… PARVOÍCES COMO ESTA!

 

* * *

 

Faço uma pausa para fingir que penso e decreto o que podia ter decretado há cinco minutos. Exatamente, cinco minutos da minha vida perdidos:

— Está constipado. Vá à farmácia e peça qualquer coisa.

— Já está? Mal olhou para ele. — É óbvio que não sou tão bom ator como pensava.

Está bem. Vou contar até… Um. Dois. Três. Espero que esta afetação seja parte do instinto de sobrevivência da espécie e que a senhora Bermejo, como mãe, tenha adquirido a estupidez máxima com o propósito de proteger a sua cria, digo, filho, de qualquer perigo com o fim de garantir a sobrevivência da espécie humana. Mas já me cansei, portanto, vou deixar de ser tão bom samaritano para me transformar num ótimo manipulador.

— O seu filho padece de uma constipação comum ou de catarro. Sim, tenho a certeza. Mas posso explicar-lhe melhor: Trata-se de uma doença infecciosa viral — omito «leve» —, do sistema respiratório superior. É altamente contagiosa.

Vejo como a mulher começa a entrar em pânico. Essa é a minha intenção. Disse-lhe que era uma constipação, mas não quer acreditar e escolhe bombardear-me com perguntas que já me fiz. Tenciono assustá-la um bocadinho, porque, assim, de certeza que prefere ouvir o meu diagnóstico anterior, um diagnóstico tranquilizador que conclua com «constipação». Devia confiar no seu médico (neste caso, vizinho) e não querer controlar questões nas quais é uma completa ignorante. Continuo a assustá-la e espero que isso faça com que desapareça da minha vista:

— Causada fundamentalmente por rinovirus e coronavírus. Não tem cura. — Omito que o processo desaparece sozinho entre três a dez dias.

— Mas não disse que era uma constipação? Que devia simplesmente ir à farmácia comprar medicação?

Bom, está a acontecer exatamente o que eu previra. Esta senhora não quer aceitar que o filho tem alguma coisa grave, portanto, neste momento, prefere ouvir o meu diagnóstico anterior e suavizado. Embora seja o mesmo, claro. Está em processo de negação. Ai, abençoados mecanismos de defesa da mente. Quem sabe usá-los bem, tem o poder da sugestão. Às vezes, falo como se fosse um bandido. Pensamento intruso: Ou algo pior.

A própria senhora Bermejo deve ter estado constipada mil vezes! Sabe muito bem como é. Porque é que, agora, parece ter esquecido tudo? Não entendo porque se preocupa tanto com a sua cria… filho. Não lhe daria importância se fosse ela que estivesse doente.

— Pode ir à farmácia, embora não tenha cura. Dar-lhe-ão alguma coisa para paliar os sintomas. — Agora que está disposta a ouvir, vou ser bom e convencê-la. — Em três dias, passará. Como disse, é apenas uma constipação.

— Então, não é nada de grave? — Outra vez! Não vai deixar-me em paz! Nunca aprendo, a estupidez humana não tem limites. Muito bem. Já não o suporto mais:

— Não me parece. Ainda que… É verdade que a constipação comum tem certos sintomas, como a tosse, a dificuldade para respirar e a expetoração, que coincidem com os primeiros indícios do cancro de pulmão. Mas não disponho de meios suficientes para o analisar.

— Vou levá-lo ao médico imediatamente! Juan! Veste-te, vamos! — Objetivo cumprido: Vão-se embora. Algum pediatra vai divertir-se esta manhã a explicar à senhora Bermejo que o filho não tem cancro.

Finalmente, posso ir-me embora. Disse «Juan»? Então, é assim que se chama o filho dela. Espero não o esquecer da próxima vez. Não gosto de parecer idiota.

Suspeita n.º 1

 

ROSARIO BERMEJO SÁNCHEZ

 

 

 

 

 

Faria o que fosse preciso pelo meu filho! O que fosse preciso. Morreria por ele e também mataria. Não sei se deva comprar trezentos ou quatrocentos gramas de vitela.

— Próximo! Diga-me, senhora, o que deseja?

O Felipe, o talhante, está de férias em Itália, mas o substituto parece-me simpático. Já me atendeu na semana passada. É grande e usa o chapéu com graça por cima de um cabelo esbranquiçado. Poderia ser estrangeiro, diria que alemão. Tem as feições robustas e largas, como se lhe tivessem batido com uma frigideira na cara. A Coque, a minha vizinha, já o fez ao marido uma vez. De certeza que foi merecido, pois essa mulher nunca se engana.

— Olhe, tenho de fazer sopa de cozido e não sei muito bem se deva levar trezentos ou quatrocentos gramas de vitela.

— Para quantas pessoas é?

— Para três, mas prefiro que sobre um bocadinho. O meu menino está doente. O médico diz que tem de ingerir líquidos, portanto, guardarei cozido, pelo sim pelo não.

— Trezentos gramas chegam-lhe. Vou dar-lhe um bocadinho a mais, «pelo sim pelo não», como a senhora diz.

— Muito bem. — Olhe, é muito atencioso.

Com essa mesma faca que o talhante está a usar agora, esfolaria qualquer pessoa que quisesse magoar o meu Juan.

— Dê-me também uma perna de frango, duas costeletas e um bocado de presunto — peço-lhe.

— Agora mesmo! — Este homem tem muita vitalidade. E passa o dia a cortar, a desossar, a amassar e a triturar carne, órgãos e intestinos e até a partir algum pescoço. Tem o avental manchado de sangue e o sangue da carne misturado com o frio do frigorífico tem um cheiro especial. Uma espécie de refresco rançoso. Vai ficar tudo muito bom no cozido.

 

 

Tiro as moedas da carteira para lhe pagar. Sou sempre um desastre para as encontrar, com estes dedos gordos que Deus me deu. Agradeço-lhe por se ter portado tão bem comigo e seco o suor da testa. Ai, Virgem, estou a ficar velha e tenho de carregar os sacos todos das compras.

— Senhora! Não vai pôr toucinho no cozido? — Interrompe-me o talhante. Tão grande…

— Olhe, tinha pensado que, como o meu Juan está doente, poderia assentar-lhe mal. Mas, agora, faz-me duvidar.

— O seu filho tem problemas de estômago?

— Não. Está constipado.

— Então, ponha-lhe toucinho, mulher! Revitaliza a alma! — As pessoas jovens sabem tudo. — Tome, ofereço-lhe este bocado. E as melhoras para o seu filho!

— Obrigada, é muito amável.

 

 

Ainda tenho de ir ao mercado se quiser comprar o resto dos ingredientes e passar pela padaria. Vou cozinhar alguma coisa para o Manuel. Portou-se muito bem esta manhã. Estava atrasado para o trabalho e, mesmo assim, o homem passou lá por casa para ver como estava o meu Juan.

Tenho pena do Manuel. É uma pessoa tão boa e válida e não tem uma mulher ou alguém que se preocupe com ele. Acho que as jovens devem achá-lo antissocial. Sim, tem um certo ar reservado e não tem um sorriso fácil. Dá-me a sensação de que se tornou um homem triste a pouco e pouco. Deve ter-lhe acontecido alguma coisa e ninguém gosta de estar sozinho, porque isso não traz alegria. Partilho a varanda e o patamar com ele há quase quatro anos e não sei mais sobre a vida dele do que o que consigo ver pela mira. Mas é elegante, bom, bonito e médico. Não tem problemas de dinheiro. Qualquer mulher devia ficar encantada com tudo isso. Ainda que, claro, hoje em dia, as mulheres se tenham tornado caprichosas. As jovens querem ser rainhas. Não sei de quem será a culpa, talvez da televisão e das revistas, mas não se conformam com nada, só veem defeitos nos homens e vazios nas suas vidas que não sabem como preencher. Querem sempre ter mais dinheiro, mais tempo, mais roupa bonita, sapatos mais brilhantes e férias mais glamorosas. E querem estar mais magras… Tudo se resume ao «mais» e o mesmo acontece com os seus parceiros. Não sabem o que têm. Só pensam no que não têm.

No meu tempo, a história era diferente. Ensinavam-nos a modéstia e o cuidado dos nossos. O meu Gerardo, por exemplo, tem os seus problemas e tenho de os aguentar, mas é um bom homem e preocupa-se com o Juan. Isso é que é importante. De vez em quando, traz-me uma flor do mercado. Sou feliz.

 

 

Por tudo isto, às vezes, vejo-me obrigada a cuidar também um bocadinho do Manuel. Não me custa nada dar-lhe uma fatia de bolo ou de empadão de batata. O pobre nem sequer deve ter tempo para cozinhar. Sai de casa depois das sete da manhã e chega muito tarde. Nem sequer sei onde come. Certamente, em algum desses restaurantes que servem comida de plástico. Só Deus sabe! Ai… Que pena… Esta noite, passo por casa dele com um pouco de sopa de cozido. Devia ter comprado mais vitela. Bom, se for necessário, faço uma omelete de queijo e dou-lhe a minha dose de cozido. O pobre não deve ter comido um cozido decente desde que a mãe lho fazia. É o mínimo! Se não fosse por ele, nem sequer me teria passado pela cabeça a possibilidade de o Juan estar em perigo e de poder ter uma doença grave. O pediatra, o Ramón, é um abençoado. Auscultou-o e garantiu-me que não era cancro. Graças a Deus, é uma constipação. Tenho de ir à igreja esta tarde para agradecer ao Senhor.

Passaria por cima da Virgem, de Jesus Cristo e do próprio Deus para proteger o meu Juan. Iria até ao inferno se fosse necessário!

2

 

 

 

 

 

Depois da interrupção da senhora Bermejo não chegarei a tempo para a primeira consulta da manhã. Não gosto de chegar atrasado ao trabalho. Pareço um inútil e a María Ángeles critica-me com o olhar, como faz habitualmente quando está em desacordo comigo. Costuma ficar calada e agradeço-lho. Contudo, os olhares dela… Suponho que seja pedir demasiado que também tenha de controlar isso.

Não sei quantas vezes me atribuíram outras enfermeiras antes de ela chegar. Acho que é a única que encontraram que é capaz de me aguentar, mas reforma-se amanhã. Reforma antecipada. Talvez, na verdade, também não me suporte. Não me importo que as enfermeiras não queiram trabalhar comigo ou que cochichem na sala do café, mas não quero chegar atrasado e dar-lhes um motivo real para falar mal de mim. Sei muito bem que não gostam de mim, mas também sei que sou um bom médico e não quero que nada manche a minha habilidade. Deviam sabê-lo. Sim, sou um bom médico. Deviam falar sobre isso.

 

 

Vou a caminho do centro de saúde e calhou-me «o lento». Meu Deus! Não pode ir a quinze quilómetros por hora numa faixa de cinquenta. É hora de ponta e é impossível ultrapassá-lo. Tenho uma fila de carros à minha esquerda e a fila da direita é liderada pelo «lento». Quase não consigo suportar a velocidade de deslocação dele. Estou prestes a buzinar… Tenho de respirar fundo e contar até… Um. Dois. Três. Por favor! Se tem prioridade, não pare. Idiota! De certeza que para dez segundos em cada sinal de Stop.

Chego a uma rotunda: A minha salvação. Vou ultrapassá-lo pela esquerda. E… touché, é dos que, para ir para a esquerda, circulam pela faixa da direita da rotunda. Tenho tempo suficiente para o ultrapassar com uma manobra atrevida e feroz. Consigo ver a cara de susto dele quando me cruzo na sua trajetória. É um homem pequeno que se agarra ao volante, curvado, como se estar perto do vidro o fizesse ver melhor. Permito-me rir-me com a expressão dele. Gosto de lhe ter causado medo, pensamento intruso. Embora tivesse preferido causar-lhe terror. Claro.

Finalmente… Inepto. Não só tenho de suportar a interrupção inadequada da minha vizinha, como também a lentidão deste condutor precavido. Odeio os precavidos! É como se passassem a vida sem fazer «nada». Tenho de respirar porque me irritam soberanamente. O estômago aperta-se numa manobra de estrangulamento que me tira o oxigénio, como quando escorremos uma toalha molhada, mas serei capaz de controlar esta raiva sem me causar uma úlcera. Tenho consciência de que não posso alterar-me assim cada vez que encontro um idiota ou morrerei na próxima semana. Controlo. Um. Dois. Três.

 

 

Ao chegar ao centro de saúde, alivia-me ver que tenho um espaço para estacionar mesmo à frente da porta de vidro da entrada. Já merecia um bocadinho de sorte… Que horror. Na verdade, o espaço está ocupado por um desses «minicarros», para lhes chamar alguma coisa. Deixam-me louco! Dá a sensação de que há um espaço para estacionar, mas não, é o efeito ótico causado por um veículo de um metro de longitude que se esconde entre outros dois carros de tamanho normal. Só por isso, deviam ser proibidos. Andam a lixar as ilusões de estacionar dos outros e, o que é mais importante: As minhas ilusões. O horóscopo – claro que falo com ironia, seria completamente estúpido acreditar no horóscopo – está a divertir-se à brava esta manhã.

 

* * *

Para chegar ao meu consultório tenho de passar pelo andar da Intervenção Precoce para Prematuros. Trata-se de um novo programa com que ensinam os pais a estimular os filhos que, por nascerem mais cedo, ainda têm problemas. Hoje, não tenho tempo para parar, mas, outras vezes, paro para os observar. Sinto uma grande curiosidade. Os bebés, em geral, nascerão idiotas? Ou começam a transformar-se a pouco e pouco? Qual deles não o é? Qual deles é como eu?

Cada vez que olho para eles, penso naquele dia em que o professor ligou para casa. A minha mãe agarrou no telefone. Lembro-me do seu rosto como se fosse ontem. Ainda que, claro, seja o que costuma acontecer: Lembro-me das coisas com facilidade e pormenores. A tal ponto que chegavam a troçar de mim. «Como podes lembrar-te disso? Tens de estar a inventar.» Outras vezes, zangam-se. As pessoas costumam misturar as lembranças, mascará-las e até redesenhá-las consoante a sua vontade. Porém, eu revivo-as com clareza e isso envolveu-me em numerosas disputas. Irrita-me que as pessoas se confundam e que insistam nas suas versões quando tenho a certeza de que não são corretas. NÃO O SUPORTO e enche-me de raiva… Um. Dois. Três.

Naquele dia, depois de cerca de dez minutos de conversa, a minha mãe desligou o telefone e disse:

— Querido, senta-te. Vou fazer-te um chocolate quente. Temos de falar.

Ela fazia sempre isso. Fazia-me um chocolate para adoçar as más notícias. Esperei sentado. Era apenas uma criança, mas não me custava ser paciente. A minha mãe voltou com o chocolate na minha chávena favorita e algumas bolachas. Untei a primeira e, depois de a saborear, agarrou-me as mãos e pediu-me para estar atento.

— Manuel, o Carlos ligou. Temos uma notícia.

Fez uma pausa para ver a minha reação. Mantive-me em silêncio. Apenas com dez anos, aprendi que não devo fazer perguntas se forem tolas ou desnecessárias. O próprio discurso ofereceria as respostas mais depressa sem a minha interrupção.

— Bom, não é uma má notícia, está bem? — Na verdade, aquelas palavras apresentavam algo trágico. — De facto, o Carlos estava muito contente e eu também estou. Lembras-te dos testes académicos que te fizeram no outro dia?

Claro que me lembrava. Lembro-me sempre. A minha mãe mexeu a minha chávena e olhou para mim com carinho e um sorriso ao mesmo tempo que dizia:

— Os resultados são impressionantes! Meu filho, és muito inteligente! Bebe um pouco mais de chocolate — acrescentou, interrompendo o entusiasmo de forma abrupta.

Sabia que, por trás daquele pedido de beber o chocolate, havia um «mas». Não parecia estar muito contente com o que devia ser um grande momento. A minha mãe esfregou os joelhos e continuou a falar num tom tranquilo. Usava uma t-shirt azul-marinho às riscas e o cabelo castanho e liso estava apanhado com um elástico bordô. Cheirava a lavanda e não poderia definir o seu olhar como inteligente, mas como escrupuloso.

— Ouve-me. Atentamente — continuou. — Tens um grande poder. Entendes?

— Sim, sou muito inteligente. — E assenti, obrigado a responder o óbvio.

— Tens de saber que o grande poder traz consigo um perigo. Não te assustes, Manuel, não sei como te explicar isto. Simplesmente, preocupa-me que, às vezes, possas sentir-te um pouco sozinho.

— Queres dizer que sou estranho? — Não me parecia uma pergunta estúpida, portanto, fi-la.

— És diferente e isso não é mau. Não te alarmes, podes usar a tua inteligência para compreender os outros. Não deves cair na armadilha do teu poder, deves ser paciente. Não desesperes se os teus amigos nem sempre te compreenderem.

— Mamã… sabia — disse, olhando para o chão e prestes a chorar.

— O que foi? — perguntou-me, prendendo-me os ombros com os braços. O sorriso dela curvou-se de forma carinhosa e uma madeixa do cabelo dela fez-me cócegas no pescoço.

— Sempre soube que era diferente — era uma criança de poucas palavras —, porque me aborreço.

— Nas aulas?

— Na vida.

— Ai, meu filho… Não te preocupes, o teu pai e eu vamos ajudar-te. Vais ver. — Abraçou-me com força até recuperar a compostura. — Antes de acabares o chocolate, ouve esta última coisa que tenho de te dizer: A chave para não cair na armadilha é o respeito. Deves respeitar todas as formas de vida e todas as formas de ser. Não tens mais direito do que os outros de decidir, mesmo que sejas muito mais inteligente. Cada pessoa consegue resolver as coisas à sua maneira e é livre para errar e escolher o seu caminho, não te esqueças disso. Se alguma vez for difícil, conta até três e lembra-te de mim.

Nesse mesmo ano, passaram-me dois anos e mudei de colegas. As crianças de doze anos eram muito mais altas e muito mais fortes do que eu. Sentia-me insignificante e exposto. Às vezes, inferior.

3

 

 

 

 

 

Cheguei ao meu consultório às vinte para as nove: Dez minutos atrasado para a primeira consulta da manhã e quarenta minutos depois da hora a que devo chegar ao meu local de trabalho. Quase nunca chego atrasado, mas, como previra, a María Ángeles lançou-me um olhar crítico, sem sequer responder aos bons-dias que lhe ofereço. A boca dela retorce-se numa expressão pouco dissimulada. Tem os lábios pintados de uma cor de cereja e o cabelo azeviche, liso como uma tábua que lhe cai à altura do queixo. Dá-lhe um ar agudo. Porém, com os pacientes, afasta o cabelo para trás da orelha. Odeia-me. Bom, amanhã, vai reformar-se, pode aguentar mais um dia.

— Temos o Alfonso à espera — diz-me e começa a falar-me dos dados clínicos relevantes. — Um senhor de…

— Oitenta e três anos, com prótese na anca esquerda e bronquite crónica. Nas últimas análises, detetou-se alguma anemia. — Acabo o resumo por ela. Lembro-me sempre dos historiais dos pacientes e gosto de a fazer saber.

— Sim. Já me esquecia da sua memória prodigiosa — comenta, com um ar aborrecido.

As pessoas não gostam. É porque se sentem ameaçadas e, então, querem sabotar-me? Têm medo? Inveja? Sou assim tão diferente? A minha mãe dizia que não devia expor as minhas habilidades em excesso, porque isso podia ofender os outros. Mas não o compreendo por completo. Custa-me. Quero que todos saibam que sou bom no meu trabalho. Qual é o problema disso?

— Diga-lhe para entrar, por favor — peço.

Tenho o «por favor» controlado. Tento dizê-lo a todas as horas, até mesmo em excesso. Sei que isso ajuda a fazer com que as pessoas mexam o traseiro mais depressa. Às vezes, deixo escapar um suspiro quando digo «por favor», como sinal do desespero que sinto por ter de estar com outras pessoas. Mas cada vez menos.

 

 

O Alfonso é um velho enrugado que anda com bengala. Na sua juventude, deve ter desfrutado de uma grande envergadura. Não é dos que me incomodam. Indica os sintomas de forma direta e acata as ordens à primeira. Não faz perguntas e confia no seu médico. Não fala muito, mas fuma como um condenado e, daí, a bronquite.

— Diga-me o que se passa. — Antes de me responder, eu sei: A segunda constipação comum da manhã. Muito aborrecido. Continuo como quando tinha dez anos: Aborrecido com a vida. Pelo menos, esta constipação complica-se um pouco graças à bronquite. A retenção das secreções de muco pelas células caliciformes, devido à paralisia ciliar das células da mucosa respiratória, aumenta o risco de infeções secundárias.

Sei de cor o que tenho de dizer a este homem sobre o tabaco. Recitei-o dez mil vezes e conheço a intervenção usada com a bronquite crónica. Primeiro ponto: Deixar hábitos não saudáveis, parar de fumar. Com oitenta e três anos? Até a barba esbranquiçada que pende do seu queixo se tinge de um tom amarelado causado pelo fumo do cigarro… Este homem quer morrer depressa, como todos os fumadores. Há poucas coisas mais estúpidas do que fumar. Mata, cheira mal e é uma conduta egoísta até à medula. Porque tenho de suportar o fumo de um cigarro que não quero inalar? Porque tenho de pôr a minha camisola na máquina de lavar roupa quando foram os outros que fumaram? «Relaxa», dizem. Mentira. O tabaco é um estimulante do sistema nervoso central e não há nada mais confiável do que a Química. É impossível relaxar. Quando se padece de um stress contínuo, os níveis de cortisol e adrenalina aumentados causam a dilatação das vias respiratórias, o aumento do volume de sangue nos músculos, palpitações… O corpo vai acelerando e cansa-se. Se, além disso, se acrescentar a nicotina, um estimulante, produz-se uma precipitação do esgotamento fisiológico. A única razão por que um cigarro relaxa é porque acalma a síndrome de abstinência.

No entanto, este homem quer acabar a vida a fumar, porque, embora seja uma forma estúpida, foi o que fez sempre. E respeito-o. É preciso ser coerente. Seria uma paspalhice imensa privá-lo do tabaco agora. O mal já está feito e o processo não pode reverter-se. Tenho de lhe dar um antibiótico.

Realizei toda esta reflexão antes de o Alfonso responder:

— Bom-dia, doutor. O que se passa é que…

Nesse preciso momento, somos interrompidos por uma gritaria que provém do corredor. Saio para ver o que se passa. Estão todos à volta do consultório do doutor Costa. Aproximo-me e vejo o meu colega, para o chamar de alguma forma, a tentar reanimar um dos seus pacientes, que caiu ao chão. Realiza a manobra enquanto os outros o observam com medo e expectativa. Um casal que está sentado na sala de espera abraça-se, consternado. Finalmente, consegue. O homem, idoso, de cerca de oitenta anos, sobrevive.

— Ligaste para as urgências? Tragam também o desfibrilador, tem… Não sei quanto tempo aguentará! — Exclama o doutor Costa, num tom autoritário. Parece o Tarzan a bater no peito com os punhos no meio da selva.

Chegam os paramédicos e levam o pobre homem na maca. Então, uma enfermeira aproxima-se do herói.

— Bom trabalho, doutor. Acabou de salvar uma vida.

— É o meu trabalho. — Faz uma pausa exagerada, na minha opinião, para recuperar o fôlego e continua. — Mas estou preocupado. Provavelmente, vai repetir-se.

— Já fez tudo o que estava ao seu alcance, tem de ter calma — declara a enfermeira, com a cara encantada.

Meu Deus, parece uma telenovela. O médico pavoneia-se com as mãos na cintura e o seu porte grande. Parece que vai cantar uma jota, com o peito expandido e a respiração profunda, cansado devido ao esforço da reanimação. Que aborrecimento, só fez o seu trabalho. Volto para a minha consulta aborrecida.

— Alfonso, lamento a interrupção. Diga-me, o que se passa?

— Estou constipado, doutor. — Tosse com um barulho bastante desagradável, tão nojento como o corrimento nasal.

— Tome o antibiótico que lhe prescrevo durante sete dias. Se não melhorar, volte a marcar uma consulta. Se observar que tem febre alta ou muitas dificuldades para respirar, vá às urgências.

— Muito bem, doutor, muito obrigado. — Levanta-se com esforço, agarra na bengala e vai-se embora.

Gosto do Alfonso. Sabe que tem uma constipação e não faz perguntas incessantes. Confia nos meus conhecimentos e habilidades para a medicina, não duvida nem pensa que sabe mais do que o médico. Então, não sei se os bebés nascerão imbecis, mas, ao fim e ao cabo, a experiência da idade é útil contra a estupidez humana. Ou, pelo menos, é o que acho. Ou o que espero.

4

 

 

 

 

 

Finalmente em casa. Estou cansado. Hoje, a corrida foi intensa. Gosto de fazer uma hora de exercício quase diariamente. Concretamente, cinco dias por semana.

Não é que considere o desporto como ócio, não sei se tenho disso. Quer dizer, não chego a compreender completamente o seu significado. «Ócio…» Não sei se o ócio é produtivo, se é útil. Entendo, não sou tolo, os benefícios do prazer e o valor da saúde. Mas não me parece que vá desfrutar, e muito menos com o ócio social, por isso não sei se, no meu caso, serviria de alguma coisa participar no que chamam «uma atividade de ócio». Todos os dias, depois do almoço, vou para casa e leio um pouco, geralmente, artigos de revistas médicas. Encomendo… Uma. Duas. Três revistas por correio. Isso é ócio?

Tenho curiosidade e, se não a saciar, expludo. É por isso que continuo a estudar e a investigar. Na vida aborrecida tão desesperante que tenho, nas minhas rotinas habituais e no meu ambiente, não encontro nada que me cause curiosidade, e muito menos que a sacie, portanto, desabafo com os textos médicos e as provas científicas mais frescas.

Às segundas e quartas-feiras vou ao ginásio e, às sextas-feiras, vou nadar. Às sextas-feiras à noite passo pelo Meio Limão, um bar. Não sei se todas estas atividades cumprem os requisitos do ócio. Para mim, são formas de equilibrar as rotinas de forma inteligente e saudável.

Porém, a minha mãe insistia que devia tentar interagir com os outros e dizia que podia aproveitar o ócio para isso, usar, como facilitadores, os gostos que partilhava com as pessoas do meu ambiente, quer dizer, os interesses comuns. Eu não tenho disso. Não.

Também não é que interaja especialmente com alguém no ginásio, na piscina ou no bar, portanto, para compensar a minha falta de relações sociais, inscrevi-me num grupo de running. Saímos para correr às terças-feiras à tarde e aos sábados de manhã. Sinto uma certa obrigação de o fazer. Não acho que precise, mas a minha mãe insistiu muito nisso: «Deves dar uma grande importância às atividades em grupo, querido. Talvez seja a tua tábua de salvação.» Era uma mulher sábia de formas que não entendia. E são poucas as vezes em que não entendo alguma coisa. Foi a única pessoa que segui com fé, sem a questionar. Mesmo assim, devo confessar que é mais fácil relacionar-me com estas pessoas do grupo de running, já que, entre as corridas, não resta muito ar para esbanjar a falar e, às vezes, não sei se cumpro com o que a minha mãe dizia.

Abro o frigorífico e agarro no Tupperware que deixei a descongelar de manhã. Vejo perfeitamente o autocolante que indica: Terça-feira: Salada de tomate, atum com cebola e peitos de frango (é óbvio que guardo os mantimentos frescos no frigorífico, não no congelador). Aos domingos, costumo organizar os jantares da semana em recipientes com etiquetas que indicam a ementa. É mais fácil equilibrar a dieta e economizar o tempo investido a pensar nisso. Faço-o de uma vez só e deixo de me preocupar durante o resto da semana. Quando cozinho, gosto de deixar todos os armários abertos. Não costumo fazer coisas inúteis como abrir e fechar portas cada vez que quero um ingrediente. Abro-as todas ao mesmo tempo e, depois, fecho-as quando acabar.

Depois de fazer o jantar, sento-me à frente da televisão. Finalmente, posso descansar. Ligo o disco rígido para ver o próximo episódio da série Mentes Criminosas. Relaxam-me as séries em que há, pensamento intruso, vítimas que morrem de forma brutal e em que se debatem conjeturas arrevesadas para apanhar os assassinos. Assim que começa a música de início, sinto-me bem, fecho os olhos, cheiro a comida que me espera e saboreio um pouco de vinho. Só meio copo. Pronto para o meu momento do dia.

— Ring! Ring! — A campainha? Agora? Mas quem pode ser, merda?

Dou uma olhadela pela mira. Ai, meu Deus…! A senhora Bermejo. O que quererá? Continua a insistir e bate à porta. Esta mulher é arcaica até à medula.

— Manuel, abra a porta! Vi-o entrar. — Merda!

— Boa-noite, senhora Bermejo. Diga. — A aspereza nas minhas palavras é evidente, até para uma inteligência como a dela.

— Cozinhei-lhe um bocadinho de sopa de cozido para lhe agradecer por esta manhã.

Fico gelado. Surpreendo-me sempre com a gratidão humana. É tonta. Ameacei o filho com um cancro falso e ela agradece-me. Entra na cozinha sem pedir permissão. Traz consigo uma tigela de sopa e mais dois pratos embrulhados em papel de prata.

— Trago-lhe também um empadão de batata e um bolo de cenoura e chocolate. Está tão ocupado que pensei que não teria tempo para comer como Deus manda.

Não tenho tempo? Estruturo muito bem cada tarefa. De forma funcional. Não preciso que interrompam os meus planos com empadões de batata ou bolos. Só me permito os doces aos domingos e em ocasiões especiais.

— Obrigado. — Da mesma forma que o «por favor», também tenho o «obrigado» controlado. No caso da senhora Bermejo, faz com que saia da minha casa mais depressa.

— Não tem de quê. Não me custa nada, homem. Agora, vou-me embora para o deixar comer. Sabe? — Veremos… O que é que não sei? — O meu filho Juan está melhor. Era apenas uma constipação.

— Fico feliz por saber — Ufa… Que porcaria de vida…

De repente, lembro-me de uma coisa. Amanhã, é a festa despedida por causa da reforma da María Ángeles! Vai haver um almoço horroroso e quase insuportável na sala do café. Cada um devia levar alguma coisa para contribuir para o festim. Tinha-me esquecido completamente! Estarei a perder as faculdades? Não, não… Na verdade, não podemos recordar o que não memorizamos, não podemos memorizar se não prestarmos atenção e não podemos prestar atenção se não podíamos importar-nos menos com a merda da festa da reforma antecipada da enfermeira. Bom, no fim, até vai dar-me jeito ter o empadão de batata e o bolo. A senhora Bermejo não tem nada melhor para fazer do que cozinhar para mim. Suponho que, para quem usa quase a totalidade do tempo nestas coisas, tenha jeito. Os meus colegas gostarão da minha contribuição para o festim.

Surpreende-me quando as pessoas me são úteis e muito mais quando sinto um formigueiro de agradecimento. Parece que, desta vez, a intromissão dela até me deu jeito.

5

 

 

 

 

 

Levantei-me depois de cerca de nove horas de sono profundo e tirei o conjunto número três do cabide.

Aos domingos, para além de cozinhar, uso o tempo para organizar a roupa. Ponho sete cabides no roupeiro com sete conjuntos completos diferentes: Calças, t-shirt, camisa e casaco. Para poder completar cada cabide com todas as roupas necessárias. Algumas calças são idênticas e uso-as mais vezes. As calças de segunda-feira, por exemplo, são as mesmas que uso na quinta-feira. Comprei-as na mesma loja. A empregada olhou para mim com estranheza, não achava lógico que comprasse dois pares de calças iguais, mas a sua lógica não chega ao nível da minha, claro.

Todos os dias, agarro num conjunto e, quando volto à noite, ponho-o para lavar, deixando um cabide vazio que terei de preencher no domingo. Para além destes sete cabides, tenho Um. Dois. Mais Três. Ocupo o primeiro com um conjunto desportivo; o segundo com algo mais elegante, como o que usaria para um jantar ou uma reunião de trabalho; e o terceiro com um conjunto equilibrado entre desportivo e «elegante». Estes cabides são de emergência, para o caso de haver uma mudança de planos, não sei, um funeral, por exemplo. Raramente tenho celebrações, jantares ou vou ao cinema, mas não é impossível.

Na minha vida, está tudo estrategicamente pensado para poupar tempo. Tempo que invisto a pensar em coisas mais inteligentes. Evito ser avassalado por tolices quotidianas e mundanas como ter de escolher a roupa todas as manhãs. Pensar nisso uma vez por semana é suficiente.

 

 

Estou na salinha do café a tentar animar a manhã com café e frutos secos. É a hora do almoço. Olho pela porta envidraçada, à espera de que, a qualquer momento, apareça algum dos meus colegas. É então que vejo passar um rabo de cavalo… Um rabo de cavalo perfeito, um rabo de cavalo que não reconheço… É o exemplo da máxima retidão, nem um só caracol. O cabelo, preto e volumoso, cai devido ao seu próprio peso e acaba por bater nas costas de alguém que anda com a cabeça bem erguida. Examino aquele rabo de cavalo com mais atenção. Balança com o andar, mas não se despenteia. Mexe-se com um movimento pendular, oscila livremente num plano vertical fixo, e a massa do cabelo possibilita um movimento harmonioso com pequenas oscilações, mas cheio de retidão. Tenho a certeza, nunca tinha visto aquele rabo de cavalo. Teria reparado e tê-lo-ia recordado com minúcia. Perco-a de vista.

A María Ángeles interrompe os meus pensamentos.

— Doutor, tem um segundo?

— Sim, claro. Diga — digo, com educação. Tratamo-nos sempre formalmente.

— A nova enfermeira acabou de chegar, a que vai substituir-me… Está na secretaria a assinar uns papéis. Assim que voltar, gostaria de lha apresentar. — Será que é «o rabo de cavalo»? — É mais jovem e, embora não tenha muita experiência, parece despachada.

Merda, era mesmo o que precisava… Não há nada que odeie mais do que a inexperiência. Bom, há, a inépcia ou a tolice com ares de grandeza.

— Parece-me bem. Tenho vontade de a conhecer. — «E de estudar a física do rabo de cavalo dela», penso.

— Começará amanhã, mas, hoje, veio para lhe explicar as funções que deve desempenhar, portanto, passarei a manhã a examinar os casos e a ensinar-lhe o trabalho próprio da enfermaria. Parece-lhe bem encarregar-se de a instruir sobre o trabalho no consultório? Não sei, poderia explicar-lhe o que espera dela ou as tarefas que deve cumprir no caso de precisar da presença dela nas suas consultas diárias.

As enfermeiras têm a sua própria intervenção individualizada nos casos. Embora me acompanhem em algumas consultas, sobretudo, desempenham funções como a gestão de grupos de educação para a saúde, vigilância de normalidade, controlo dietético, tratamentos, monitorização de funções, controlo de glicemias, vacinas… Tenho de admitir que, para além de ensinar as pessoas doentes a ser menos estúpidas, também me livram do trabalho mais direto e íntimo com elas. E agradeço. Às vezes, a enfermeira tem de entrar no consultório comigo. Embora dependa do paciente, a necessidade de o fazer acaba por ser decidida pela María Ángeles. Pessoalmente, não vejo a utilidade disso. Fazem-no muito bem lá fora e não sei porque é que a María Ángeles decide que devem entrar.

— O que quer exatamente que fale com ela sobre o trabalho do consultório? — pergunto, já que não faço a mínima ideia do que está a falar.

— Refiro-me às tarefas de que deve encarregar-se quando partilhar o consultório consigo e à atitude que deve ter nelas. — Ah, nas tinham tarefas? Disse-lhe que não costuma gostar que intervenhamos em excesso.

E como é que a María Ángeles sabe isso? Está a surpreender-me. Não é que não goste que participem, simplesmente, não preciso que o façam. Seria uma perda de tempo. Porém, continuo sem perceber que explicação devo dar à nova enfermeira. O que é que uma enfermeira faz no meu consultório? Observar? Pigarreio um pouco e, face ao meu mutismo, a María Ángeles continua num tom visivelmente irritado.

— Funções como medir a tensão, pesar, imprimir as receitas e fazer as marcações das consultas para que o doutor possa tratar de outras coisas. Valorizar a necessidade da intervenção individual do serviço de enfermaria e especialmente e muito mais importante: A tarefa de acomodar o paciente — disse-o com remorso. Magoava-a que não soubesse explicar quais eram exatamente as suas funções quando recebemos um paciente juntos.