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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Marionetas sem fios

Título original: Marionetas sin hilos

© 2019, Tadea Lizarbe Horcada

 

© 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: CalderónStudio

Imagem da capa: Dreamstime y Shutterstock

 

1ª edição: Janeiro 2020

 

ISBN: 978-84-9139-454-9

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Ada Cuevas

Agente Bruna Badía

O pensamento intruso de Ada Cuevas

O pensamento intruso de Bruna Badía

Ada Cuevas

Julgamento do caso do marionetista (16 de março de 2014. 12h37)

Três semanas antes do julgamento

Três meses antes do aparecimento do corpo de Antonio

Dois meses antes do aparecimento do corpo do Antonio

Julgamento do caso do marionetista (16 de março de 2014. 12h37)

Dois dias antes do julgamento

Dois dias depois do julgamento do caso do marionetista

 

 

 

 

 

Para as igualdades que se disfarçam de diferenças

 

Para o X oculto que há em cada nome

 

Para vocês

 

 

 

 

 

— Senhora Cuevas?

— Sim.

— Senhora Ada Cuevas?

— Sim.

— Lamentamos muito comunicar-lhe que o seu marido morreu.

 

 

 

 

 

Fique. Esta não é uma história triste…

 

Ada Cuevas

 

 

 

 

 

— Como é que o meu marido morreu? — pergunto.

— Deixe-nos apresentar-nos, esta é a agente Badía e eu sou o agente Huguet, da polícia de San Sebastián.

Observo o homem que acabou de bater à minha porta, perdida. Tento concentrar-me o máximo possível no que diz. Talvez ainda esteja a tempo de separar as palavras. Mas é como querer continuar a conduzir, apesar de o para-brisas estar congelado.

— Martín e Bruna, se preferir — acrescenta a mulher, como se… Como se a simpatia de oferecer a sua proximidade fosse importante. Mais importante do que, mais importante do que…

— Como é que o meu marido morreu?

— Lamento muito, senhora. O seu marido… — O agente hesita, o que me faz pensar que talvez exista a possibilidade de Iker estar vivo.

— O Iker?

— O Iker sofreu um, um… um… um acidente.

Alguém tenta conter os meus cacos, segurando os meus braços para não cair ao chão. Não sei quem. Ela ou ele. Ele ou ela…

— Como está o Iker?

— Senhora, tem de entender: O Iker morreu. — A agente não hesita, sentenciou a morte do meu marido e é agora que me apercebo de que é ela que segura os pedaços da minha vida ao agarrar os meus braços, ao assegurar fisicamente a minha estabilidade. É a porta-voz da clareza. O colega não conseguiu usar a contundência necessária para que conseguisse acreditar no que está a acontecer. Ela conseguiu. Tem algo especial. Não há alternativa: Iker morreu. Então? Então, já não posso continuar a perguntar por ele. Nunca mais.

O rosto da agente concentra-se completamente em mim, como se só pudesse vê-la a ela. Os seus lábios estão selados, compreende que percebi a mensagem e, agora, fica a olhar para mim com aqueles olhos cor de couro. Detenho-me nas pupilas dela. Sinto o corpo colado ao meu, a força atlética e o cheiro a champô do cabelo castanho ao tocar no meu pescoço. Abraça-me e segura-me com o único apoio possível que vejo na minha vida agora enquanto me deixo cair lentamente, arrastando-me pela parede e arranhando-me na tinta espessa. O vazio é tão profundo que até consigo ouvir o barulho que não faz, enjoa. Até querer vomitar.

Alguém pegou num machado e cortou o meu mundo. Não compreendo. Digo que não entendo. Se não tivesse aberto a porta, Iker continuaria vivo? Penso realmente nisso. Não… não, não entendo. O que posso fazer para que as coisas continuem como até há apenas alguns minutos? Não devia ter aberto a porta e tudo continuaria bem e, sim, ele voltaria para casa e para mim… Não?

— Talvez possamos sentar-nos num lugar mais confortável e falar do que aconteceu — sugere o agente Huguet.

Não reajo. Caída no chão, dirijo o meu olhar para cima como uma menina perdida. A agente Badía segura-me pelas axilas e levanta-me com a ajuda do colega. Num dia qualquer, teria conseguido levantar-me sozinha sem esforço, mas hoje não, peso mais do que o normal, a gravidade pesa-me nos tornozelos.

Esse «lugar mais confortável» para onde me levam é o meu sofá branco. O nosso sofá branco. O sofá branco que Iker detestava.

— Não tenciono sentar-me aí! — grito. Com força. Com algo que faz com que continue a respirar. É algo sombrio, raiva. Apercebo-me de quem são os meus acompanhantes, mas acho que não me reconhecem, apesar de ter escrito, literalmente, as palavras deles no ecrã de um computador dezenas de vezes.

Sou a taquígrafa do tribunal onde eles declaram habitualmente.

Furiosa, precipito-me para o sofá branco. Bato-lhe com os pés e os punhos até sentir dor; tento esfolá-lo, com as unhas, com seja o que for. Iker não o queria e este sofá já não pode estar aqui, a rir-se por ter sobrevivido ao meu marido. Como se o sofá tivesse mais direito do que Iker de estar comigo!

 

Agente Bruna Badía

 

 

 

 

 

— Acalme-se, senhora! Bruna, faz alguma coisa — pede-me Martín, desesperado.

Tento agarrar a senhora Cuevas pela cintura e afasto-a do sofá. Por alguma razão, levá-la para lá não foi boa ideia. Pelo caminho, agarra numa jarra da mesa da sala de jantar e atira-a para os estofos brancos. Reconheço a fúria.

— QUERO QUE VOLTE! — grita. Exige.

Agarra-se ao meu abraço como uma lagartixa angustiada exilada para a escuridão.

— Tem um contacto a quem possamos ligar? — pergunta Martín.

— Iker! Era Iker! Mas, agora, já não é. Entendem? Não podem ligar a ninguém. NÃO HÁ NINGUÉM.

A mulher para à frente do bengaleiro da entrada, agarra no casaco que, suponho, era do marido e veste-o. Depois de um segundo de calma aparente — tenho a certeza de que acha que ainda consegue encontrar o marido nesse cheiro — o seu rosto transforma-se e, guiada pela impotência, bate repetidamente contra o bengaleiro. A dor parece realojá-la num mundo sem lembranças.

Está a começar a sangrar. Martín e eu rodeamo-la com passos lentos, como domadores de leões, e ele agarra no telemóvel para chamar ajuda:

— Precisamos de assistência médica em… — São as últimas palavras que a senhora Cuevas ouve, antes de cair, inconsciente.

 

 

 

 

 

Pensamento intruso: Diz-se daquele pensamento disruptivo e de origem inconsciente que, às vezes, invade o nosso consciente, com um efeito atroz consequente nas nossas decisões, condutas e estado anímico. É tão difícil de detetar como de erradicar, já que, no seu estado original, é invisível. Dada a sua natureza impulsiva, às vezes, manifesta-se de maneira fugaz para assinalar a sua influência feroz e nociva nas nossas histórias.

 

O pensamento intruso de Ada Cuevas

 

 

 

 

 

Ada Cuevas não foi uma menina fácil. De facto, ninguém no bairro isolado em que viveu na sua infância era capaz de sequer lhe chamar «menina». Não cumpria os cânones da inocência. Era inteligente no desempenho das suas atividades e nunca conseguiram provar que a responsável por todos os vandalismos de que os vizinhos eram vítimas era ela. Contudo, sabiam. Por trás do seu olhar sombrio, havia um regozijo de satisfação que a denunciava o suficiente para que cada vizinho cerrasse os dentes com uma raiva impotente. Sem provas incriminatórias, pouco podiam fazer.

Os pais estavam preocupados. Nunca com os mexericos dos vizinhos, mas com as atividades que a filha decidia pôr em prática de repente. A respeito do nível de alarme, começou a crescer de maneira preguiçosa, ao princípio, em situações corriqueiras. No parque, sob o olhar atento de Ada, o antigo inquilino, de apenas cinco anos, pegava nas suas coisas para arranjar espaço para ela no baloiço.

Depois, passou a roubar da figueira do vizinho ou a subir para os fardos de palha dos lavradores, destruindo o seu trabalho árduo. Perto da adolescência perigosa, começou a entrar nas casas dos vizinhos. Não gostava de roubar, gostava de mudar os móveis e os objetos de lugar, de maneira a que, quando os proprietários voltassem, não conseguissem explicar o que acontecera. A dúvida inquietava-os até se incriminarem entre eles, acusando-se dessa mudança inexplicável na decoração de que ninguém parecia ser responsável. Ada adorava tudo isso, adorava as suas ideias originais para atormentar os outros.

Os pais receberam várias chamadas da escola. Apesar do sucesso académico, nunca criou um vínculo com as outras crianças e, novamente, sem provas concludentes, umas migalhas levavam à conclusão de que Ada estava a intimidar e até a abusar das outras crianças.

Então, chegou o nascimento do irmão. Os pais não usavam o aparelho de vigilância para verificar se o menino dormia. Na verdade, não queriam perder Ada de vista, pois observava o berço do maninho todos os dias, com curiosidade. Porém, nunca lhe tocou. Talvez Ada tivesse uma escuridão que usava fora de casa, mas respeitava a família profundamente. Ainda que fosse de uma forma fria e distante, amava-os. Protegê-los-ia.

Com dez anos, receberam uma chamada explosiva da escola que os convocava nessa mesma tarde. Com urgência.

— Não sei como dizer-vos isto. — A voz da professora tremia.

— Resuma — pediu a mãe.

Estavam prontos para aquele momento há muito tempo. A professora respirou fundo:

— A sua filha esteve a caçar lagartixas e… e…

— Disse-lhe para resumir.

— Cortou-lhes a cabeça e deixou os corpos espalhados por todo o pátio. — Parecia descrever o cenário de uma matança. — Deixou as crianças atemorizadas. — E ela também parecia estar.

Mandaram Ada entrar na reunião. Os pais sabiam que teria uma explicação inteligente para a absolver e tiveram pena da professora. Pobre inocente.

— Alguém me disse que, se cortasse as cabeças das lagartixas, voltavam a crescer.

A professora sorriu, com um certo receio que provinha do inconsciente, mas com a ternura causada pelo ar inocente de Ada. Manipulada.

— Isso são as caudas, querida, mas também não deves fazê-lo. Tirar as caudas às lagartixas torna-as mais vulneráveis aos predadores.

Como se Ada não adorasse isso.

— Lamento muito, não volta a acontecer.

O seu castigo? O ar terno que recebeu da professora ao acariciar-lhe o cabelo.

Os pais, apesar de não acreditarem numa só palavra da filha, ficaram em silêncio, pois não queriam arriscar-se a fazer com que a expulsassem da escola. Mas também não cruzaram os braços: Decidiram que estava na hora de a filha deixar esse caminho sombrio e que uma atividade em equipa, como o basquetebol, poderia ajudá-la com isso.

Nesse contexto social, que dava um certo alívio a Ada ao descobrir a permissividade do contacto físico, anos depois, apareceu Iker. Era um rapaz de estatura alta, com o corpo moldado pelo desporto, de olhos rasgados e castanhos e um sorriso enorme. A primeira coisa que Ada pensou foi que queria apagar-lhe aquele sorriso estúpido. No entanto, não houve forma. O sorriso de Iker parecia alheio a todas as suas artimanhas. Obcecou-se com isso. As suas tentativas de fechar essa bocarra e destruir essa serenidade inquebrável tornaram-se uma obsessão. Aproximou-se dele. Primeiro, tentou seduzi-lo, depois perturbá-lo e, em breve, foi ela que caiu nas redes daquele rapaz imune ao sofrimento.

O mundo que lhe mostrou fez com que a essência sombria da sua identidade, aquilo que mostrara na infância, se escondesse, acompanhando-a unicamente nas sombras. No caso de Ada, esse pensamento intruso que joga às escondidas tem um nome: A Velha Conhecida.

 

O pensamento intruso de Bruna Badía

 

 

 

 

 

Bruna Badía não foi uma menina fácil. Já desde criança que se destacava pela sua teimosia e pelo facto de ser incapaz de respeitar as regras. Para os outros, era uma menina «excessivamente curiosa». Se a curiosidade pode ser excessiva, não devia e, por isso, os pais não quiseram evitar essa atitude da filha. Tiveram de sofrer alguns acidentes, como aquela cortina que ardeu num domingo ou as chamadas numerosas da escola a avisá-los do desinteresse de Bruna em relacionar-se com as outras crianças e com os estudos. Porém, aborrecia-se. Tinha tanta vontade de explorar que os livros de texto se tornavam obsoletos e foi o início das aulas de anatomia que fez com que o alarme estridente sobre a sua personalidade tocasse em forma de uma chamada telefónica que convocava os pais para uma reunião nesse mesmo dia. Urgente.

— Não sei como vos dizer isto. — A voz da diretora tremia. Sentados ao lado, o professor e o orientador tentavam dar-lhe força.

— Resuma. — Os pais tinham passado muito tempo a preparar-se para aquele momento.

— A sua filha apareceu na sala de aula com um gato morto. — A diretora apontou para o chão para uma mancha escura e resistente a modo de carreiro que rodeava as carteiras até à saída da sala de aula. — Sangue. — Os pais deram as mãos.

— Estávamos na aula de Ciências da Natureza quando a Bruna — interrompeu o professor —, apareceu com o gato morto. E a sorrir, além disso!

— Que explicação deu? — A mãe sabia que Bruna teria uma boa resposta.

— Perguntou porque não dissecávamos o gato.

— Estavam na aula de Ciências, não estavam?

O professor surpreendeu-se por aquela mulher defender a filha num cenário tão macabro.

— Expulsei-a da sala imediatamente e ela resistiu. O gato começava a cheirar mal. E o que fez? Como vingança…

— Como vingança, segundo a sua opinião.

— Sim, segundo a minha opinião acertada, como vingança, arrastou o gato morto pela sala até à porta e deixou essa marca de sangue que não há modo de limpar.

— Temos de descobrir o motivo da sua conduta — interveio o orientador. — Dado que a sua filha tem dificuldades em relacionar-se, em respeitar as regras e especialmente… Especialmente devido a este acontecimento, aconselhamos que um psicólogo a examine. Estão de acordo?

— É claro. Mas gostaria de chamar a Bruna para que tenha a oportunidade de se explicar.

— Está bem — acedeu o orientador.

A menina entrou numa sala com cinco adultos a observá-la em silêncio. Não precisaram de perguntar nada.

— Não o matei.

Só Bruna é que pensara nessa possibilidade, o que arrepiou os pelos das nucas de cinco pessoas supostamente prontas para ver filmes de maiores de idade.

— Encontrei-o numa sarjeta, tinha sido atropelado por um carro. Quando vi as tripas, pensei que poderíamos usá-lo para compreender melhor as aulas de anatomia, professor.

— Acabámos? — A mãe tinha pressa. Ou melhor, tinha vontade de proteger a filha.

— Ficas suspensa durante três dias — declarou a diretora, num tom perdido. Não tinha a certeza da sua decisão.

 

 

Bruna passou no teste com o psicólogo, que não descobriu nada de importante nela, mas os pais decidiram fazer alguma coisa. Temiam que Bruna ficasse isolada num mundo que não compreendia a sua atitude curiosa.

— Filha, temos de falar. — O pai sentou-a numa cadeira. — A partir de agora, vamos escolher bem.

— O que queres dizer?

— Deves ter percebido que algumas das coisas que fazes não são bem vistas pelos outros.

— Mas…!

— A partir de agora, questões como dissecar gatos, provocar incêndios ou qualquer ideia que penses que vai mais além, acho que entendes a que me refiro, serão tratadas fora do horário escolar e connosco.

Bruna detetava perfeitamente aquelas situações que iam «mais além»; a falta de curiosidade dos outros irritava-a e, quando isso acontecia, era um sinal identificativo.

— Vão dissecar bichos comigo?

— O que for preciso. — Os pais queriam orientar a filha nas suas experiências, acompanhá-la até ao limite mais sombrio e enchê-lo de luz. Se não aprisionassem a sua curiosidade, se não a proibissem, poderia transformar-se em algo natural e controlado.

— Está bem, mas não tenciono voltar para a escola. — Depois da reunião, sentia-se furiosa.

— Não, Bruna. — A mãe foi contundente. — Tens de ir à escola e aprender a lição.

— Que lição?

— Nesta vida, não há apenas curiosidade onde queres vê-la. Deves encontrar a curiosidade em cada oportunidade que se apresente.

— Não sei como conseguiria fazê-lo. Na escola, está tudo… Como diria? Está tudo tão ordenado… Aborreço-me!

— É por isso que temos uma proposta para ti, uma experiência.

Bruna esbugalhou os olhos. Bruna gostava de se pôr à prova e de descobrir mais sobre o mundo, por isso os pais, para canalizar a sua curiosidade, propuseram-lhe um desafio e a filha não conseguiria evitar aceitá-lo.

— Observa as relações que há entre os teus amigos. Tenta descobrir porque as pessoas fazem o que fazem. Achas que és capaz de resolver esse enigma?

Para olhos inexperientes, parecia mais uma menina a brincar no pátio; mas as suas brincadeiras não tinham nada a ver com a inocência. Começava a tornar-se perita na investigação da conduta humana.

A curiosidade não matou o gato desta vez.

Apesar de o seu mundo se dirigir para a luz, a essência da sua infância, a sua vontade de indagar na escuridão, manteve-se viva entre as sombras.

No caso de Bruna, o seu pensamento intruso tem um nome: A Indiscreta.

 

Ada Cuevas

 

 

 

 

 

Estou à frente de um cadáver, de braços cruzados, a observar a morte para pensar na vida, numa sala solitária de autópsias.

O corpo deitado na marquesa não é o de Iker. Esse sabor amargo, que nem sequer deixaram que acompanhasse com limão e sal, passou. Já passou. É o de uma mulher jovem que poderia ser eu própria. Pálida e rígida, enfrenta a morte morta. Digo-o porque, aqui, poderiam entrar em jogo frases como enfrenta a morte «com um ar imaculado», «com um ar inocente», «com uma certa beleza», «com a lembrança da sua vida». Está morta e mais nada. Não sei se se esqueceram de a tapar com um lençol ou se já nada importa. O corpo nu é esbelto e fibroso, pronto para correr, pronto para pôr o seu coração a mil à hora. Se não estivesse morta, claro. Aproximo-me e pouso a minha mão trémula por cima desse coração que poderia ter participado numa maratona sem problemas.

— O que faz aqui, menina?

O médico forense descobriu-me. É um homem curvado, de cerca de sessenta anos. O cabelo é grisalho e escasso e remata a imagem de cientista louco com uns óculos de armação arredondada que dançam por cima dos seus olhos. O aspeto dele é estranho, ainda que «o que importa» seja a minha frase favorita a partir de agora. O que importa realmente?

— O cheiro da sala não é o que esperava. — É o que consigo dizer, como se não fôssemos dois estranhos.

— E o que esperava? — Continua sem cobrir o corpo da mulher. O cadáver.

— Gostaria que fosse mais impressionante. Aqui, só cheira a desinfetante.

— Vejo que não pertence à maioria.

— O que quer dizer?

— A maioria das pessoas prefere o cheiro do desinfetante ao da morte.

— Só que procurava um sentido… um sentido para… — Não sei expressar-me.

— Um sentido para a morte? — Fala como se me conhecesse. Talvez, por um motivo que desconheço, não sejamos dois estranhos.

— Sim. Gostaria que a morte fosse digna.

— Acho que consigo compreender.

Estou há dois meses internada na ala da Psiquiatria do Hospital Universitário. Depois da notícia da morte de Iker, tentei suicidar-me, duas vezes, mesmo quando já estava aqui internada. Tentei fazê-lo com uma faca da bandeja da comida do hospital que quase não tinha potencial para cortar o peixe. E, por esse erro, estou há dois meses sem passar o teste de risco suicida com sucesso. Ora, quero morrer e percebem.

Sinto a frieza com que digo estas palavras, mas pouco me importam. Uma merda.

— A morte devia ter um sentido e o desinfetante está a tirar-lho. Devia ser capaz de nos fazer vomitar ou de nos fazer cair ao chão. Aprisionados por uma gravidade que o Newton não contemplou.

— Conhece a falecida?

Abano a cabeça.

— Então, acabou de sofrer a perda de um ente querido.

Foda-se, observar um cadáver terá algum sentido. Foda-se, estar morto terá algum sentido. Quanto menos sentido a morte tiver para mim, menos sentido terá a morte de Iker, o que me faz querer abandonar este mundo ainda com mais vontade.

Visto a bata do hospital, o uniforme dos doentes, mas não quero que o médico forense saiba que provenho da Psiquiatria, portanto, escondo o meu pulso. Aos pacientes da Psiquiatria não lhes é permitido usar uma pulseira de identificação porque consideram que podíamos magoar-nos com ela. É uma tolice. Só eu, que quero acabar com a minha vida, pensaria em como poderia usar uma pulseira de plástico para isso.

Também falam do sigilo profissional e dessas tolices e dizem que é por isso que não nos põem a etiqueta. No entanto, apesar de não usar pulseira, sinto-me etiquetada, precisamente por não a usar. Qualquer pessoa que não a veja, saberá.

— Fugiu da Psiquiatria. — O médico forense, por exemplo. Não consegui esconder a falta da etiqueta. — Tem de ser muito inteligente para conseguir fazê-lo. São muito cautelosos lá em cima.

— O cadáver não devia estar coberto com um lençol? — A conversa está a ser fodidamente fria. E estranha. Não entendo esta cumplicidade nem porque não chamou a segurança. Venho da Psiquiatria. Não tem medo de mim? Essa é a estupidez que todos cometem, quando eu só quero magoar-me.

— Por decoro?

— Exato.

— Preocupa-se com o decoro?

Uma voz dentro de mim diz que não. É uma voz que me deixa gelada por um instante, mas que reconheço como uma velha amiga.

— O corpo não está escondido porque ia começar a autópsia e não esperava visitas. Quer ver como o faço?

— Vai dissecá-la?

Era tudo cada vez mais estranho.

Observo o rosto da jovem. Continua a estar, simplesmente, morta. Como Iker. Quero estar presente numa autópsia? Direi que sim. Talvez a morte tenha sentido lá dentro, nas suas entranhas.

Antes de a parte lúgubre que me possui agora conseguir saciar o seu apetite, alguém nos interrompe. A surpresa é tal que poderia ter passado parte das minhas palpitações para o cadáver, criando um segundo de vida, um espasmo. Até o médico forense reagiu com um salto.

— Estávamos à sua procura e começávamos a preocupar-nos. — Vêm atrás de mim, é o auxiliar da ala da Psiquiatria.

Não me lembro do seu nome. É um homem alto e magro, o cabelo começa a embranquecer nas raízes das suas suíças e mostra um olhar que diz pouco, mas compensa esse silêncio com tudo o que diz. Ainda que, para mim, ninguém diga nada. Talvez isto tenha a ver com o estado de insensibilização emocional em que me encontro.

A sua interrupção aborrece-me. Tinha a certeza de que algo tão brutal como uma autópsia me puxaria com uma corda e uma roldana do poço em que me encontro. Avanço para o auxiliar com o olhar rígido do médico forense atrás de mim, que escondeu o corpo da jovem por baixo de um lençol. Porque não teve a precaução de o fazer comigo? Queria causar uma reação em mim? Era o que procurava na morgue, ao fim e ao cabo. Continuo a surpreender-me com a nossa cumplicidade.

O auxiliar agarra-me o braço. Agarrados um ao outro, como duas avós, eternas amigas, que sussurram e se apoiam uma na outra, dirigimo-nos para a saída.

— Ada — interrompe o médico forense —, não há nada de mal com essa curiosidade.

Não recordo ter-lhe dito o meu nome. E, sem dar explicações, põe o protetor no rosto e veste o avental, para não se sujar de sangue, e não me dá a opção de responder. A surpresa também não me deu tempo para fazer a pergunta: Como sabe o meu nome?

O auxiliar carrega no botão para chamar o elevador. É interessante que, para poder chegar à Psiquiatria, precise de um passe de admissão, de um cartão de código. No entanto, para ir para a morgue, basta carregar no botão. Acho que a vida funciona da mesma forma, carregamos no botão errado e morremos.

Quando o elevador abre as suas portas, vejo-me obrigada a fechar os olhos. Não consigo controlar as lembranças que a minha mente traz para me castigar.

Era um dia qualquer, fora um dia qualquer no trabalho e uma tarde qualquer. Deitei-me no sofá com um suspiro. Oxalá tivesse sido um suspiro de cansaço, mas era de aborrecimento. Que nojo de aborrecimento. Que nojo de rotinas. Que nojo de fazer sempre o mesmo. E mais suspiros. Então, tocaram à campainha:

— Vão trazer uma encomenda. — Reconheci a voz.

— Uma encomenda, Iker?

— Senhora, entrega ao domicílio.

Estava a brincar. Exatamente no meu dia de aborrecimento!

Não sabia muito bem a que me agarrar. Espreitei para o patamar e esperei. Ouvi o elevador a descer e, depois, a subir outra vez. Como o elevador estava ocupado, o aborrecimento desceu pelas escadas até desaparecer. Quando as portas se abriram, ali estava: Um tupperware minúsculo a ocupar o elevador. Uma imagem muito divertida: Encontrei a minha salada mista favorita. Ena, sim. Uma salada! Não era uma sandes gordurosa de salsichas com cebola e mostarda, nem um hambúrguer com queijo de cabra e bacon, nem uma omeleta de batata acabada de fazer. A minha salada! No bar da frente, El Cortés, fazem uma salada mista que me enlouquece. É o tempero secreto, o atum ou a textura da alface. Não sei muito bem o que é, mas é algo que ninguém compreende. Iker compreende. Compreendia, quero dizer. Bom, não quero dizer isto, mas Bruna deixou bem claro que o meu marido estava morto. Ah, não, o meu marido não estava morto, o meu marido está morto.

Ao recordá-lo, vomito no caixote do lixo. Acho que o meu corpo não encontra a forma de expulsar as lembranças felizes e tenta de tudo. Sabe-se que as lembranças felizes, ao contrário de um cadáver, são capazes de me fazer vomitar.

— Estás bem? — pergunta o auxiliar. Há muito tempo que «trabalhamos» juntos e, aparentemente, criou um vínculo comigo. Parece consternado, parece realmente preocupado comigo. Eu não estou para vínculos com ninguém e também não vou preocupar-me com nada, nem sequer comigo própria.

— Sim, calma.

— É por causa do cadáver? — Ainda consigo ver a mesa de autópsias daqui.

— É possível. — Mentira, mas não quero que me faça perguntas.

— Fugiste e isto vai custar-te outro mês de internamento.

— O que importa? — E o que importa tudo?

— Como conseguiste fugir?

Agora, sorrio, não com alegria, com atrevimento. Por ter deixado a ala psiquiátrica com ar de parva com uma fuga quase perfeita. Ultimamente, as emoções que mais me atraem não entram na gama heroica.

Contudo, prefiro a dor, a raiva, à astúcia. Prefiro o lado sombrio dos sentimentos à lembrança da felicidade.

O que é que o médico forense disse? «Não há nada de mal com essa curiosidade.»

 

 

 

 

 

O auxiliar passa o cartão de código na porta da ala da Psiquiatria e arrasta-me pelo braço até ao interior como uma boneca de trapos. A caminho, passamos pela sala das enfermeiras, ou a guarita de vigilância, como lhe chamo, de vidro. Deixa-me na sala comum e dirige-se para a zona dos escritórios para informar a nossa psiquiatra, a doutora Azcárate, Paloma para os amigos, do que aconteceu. Suspiro com aborrecimento enquanto me deixo cair na poltrona fofa. Que aborrecimento de vida quando a morte seria tão interessante. Mexo os braços à espera da sentença que Paloma vai ditar para mim. Não acho que estas poltronas sejam tão macias pelo bem comum das nádegas dos pacientes psiquiátricos. Deram-se ao trabalho para o caso de algum paciente decidir utilizá-las como arma de alguma forma. Pelo menos, é o que penso, porque vejo qualquer objeto como uma possibilidade de me magoar até morrer.

— Apanharam-te? — pergunta Tara. Assinto com um suspiro. O que importa?

Tara mantém uma certa calma, como se se tivesse habituado a estar aqui. Às vezes, penso que realmente sente que este é o seu lar e, outras, penso que se rendeu sabendo que não há opção.

— Pelo menos, gozaste com eles — diz, deixando de prestar atenção à televisão por um segundo.

— Sim, só por isso, valeu a pena. — Regozijo-me.

— És uma mulher inteligente, Ada.

Não respondo. E o que importa se for assim? Se não quero ser nada.

O auxiliar sai do escritório e dirige-se para nós. Não vejo Paloma a acompanhá-lo.

— Disse-lhe que não resististe.

— Muito bem, obrigada. — Pelo tom que estou a usar, poderia ter dito «o lombo mal passado, por favor». O que importa que o auxiliar queira ajudar-me? O que importa?

— Não queres saber o que a Paloma respondeu?

— O que respondeu? — repito.

— Disse que, se fomos suficientemente imbecis para te deixar fugir, não mereces um castigo, mereces um prémio.

Tara ri-se com vontade e o auxiliar reage com um ar contido, quer brincar com a negligência dos seus colegas, incluindo a dele.

— O que fizeste não é nada fácil. Aqui, são conscienciosos, competiste contra grandes profissionais.

— Ela é maior. — Tara ri-se com o auxiliar. Não consigo acompanhá-los na gargalhada. Sou um despojo. Por enquanto, agarro-me ao regozijo que senti por gozar com todo este conjunto ditatorial.

À porta da sala, aparece a silhueta compacta de Ander, colega de internamento. Espera que o auxiliar se afaste para se sentar connosco. Tara tolda-se, o rapaz tapa-lhe o pouco sol que resta nesta prisão, porque não usa o seu sorriso como devia, quer dizer, usa-o para gozar com os outros e, especialmente, para gozar com Tara. Tenho a certeza de que não sabe o que fazer com o seu tempo e procurou refúgio nesta ala psiquiátrica. Devia sentir uma certa empatia. Eu também não sei o que fazer com o meu tempo.

Ander aninha-se em cima do cadeirão. Como um símio sem espaço. Pronto para usar a sua língua viperina.

— Diz-me, esta manhã, quando lançaste a moeda, o que saiu? Cara ou coroa? — Fala das mudanças bruscas de humor de Tara.

— Para com isso. Meto-me nos teus assuntos? Achas que gosto de ver quando te prendem à cama? Achas que gosto de ver quando esticas as mangas da camisa para tapar os cortes dos pulsos? Não entendo porque gostas de espicaçar o meu sofrimento, várias vezes, quando eu sofro cada vez que te vejo a perder o controlo. Sofremos! Sofres tu e sofro eu!

O seu discurso silenciou o tom brincalhão de Ander. Fechou essa bocarra para olhar para ela com uns olhos estranhos. Não sei se continua a gozar com eles ou se este jogo deixou de ter graça.

Sou uma mera observadora de tudo o que acontece com os pacientes deste andar, porque pouco me importa. Porque não há nada que me cause curiosidade suficiente para parar o meu pensamento em algo que não seja querer acabar com a minha vida.

 

 

 

 

 

Tenho outro plano para me suicidar. Os dois anteriores falharam, mas, desta vez, não serei tão imbecil. Para o levar a cabo, primeiro, tenho de sair desta merda de hospital e desta merda de ala psiquiátrica. E, ironicamente, são os outros que devem decidir se quero continuar com a minha vida. Arrependo-me de ter deixado que me roubassem o tempo devido ao frenesim da minha vida passada. Um maldito anúncio na televisão que me fez retirar a atenção de Iker por um segundo, por exemplo. O que daria por esse segundo agora! E, agora que quero renunciar completamente a todo o meu tempo de vida, negam-mo!

Se isto fosse uma história de ficção, o meu marido teria sido vítima de assassinato. Começariam uma investigação policial e a necessidade de encontrar o assassino impulsionar-me-ia a viver. «A vingança é a única coisa que resta», diriam no trailer do filme, mostrando o olhar selvagem da protagonista. E a dúvida eterna do espetador: «Acabará por o matar com as suas próprias mãos ou vai entregá-lo à justiça?». Foda-se, nem sequer há um vestígio do mistério de um assassinato para me obcecar e para me impulsionar a viver. Zero clichês. A morte de Iker foi um acidente merdoso e absurdo na calçada, a duzentos quilómetros da nossa casa, prestes a entrar no carro para voltar para mim. Como foi o acidente? Estúpido. Estava a correr para passar um sinal vermelho, apoiou mal o pé ao chegar à calçada, escorregou e bateu com o crânio contra uma cerca protetora. Fez bem o seu trabalho de protetora, a imbecil.

Oxalá o tivesse visto no mesmo dia em que ia morrer porque, agora, resta uma soma Matemática odiosa: Dias sem o ver = dias sem o ver enquanto estava vivo + dias sem o ver enquanto está morto. As lágrimas rasgam-me. Eu explico, uma lágrima sai do meu olho, que vai transbordar e, enquanto percorre a minha face, rasga-se em mais lágrimas até tapar o meu rosto como as ligaduras de uma múmia. Também não é que me importasse de morrer asfixiada.

 

 

Hoje, enfrento novamente o teste de risco suicida, por isso a minha família e Maite, a minha melhor amiga, vieram visitar-me. O Amor deles é a única coisa má de ter decidido matar-me. Sinto-me culpada. E uso o termo «amor» com maiúsculas porque é um ente com identidade própria que me persegue continuamente. Olha, aí está o amor de Maite, a dar saltinhos engraçados ao meu redor, não vai parar até me alcançar, porque me ama imenso e, quando me cumprimenta, enlouquece de alegria. Aninha-se contra mim, mas não ficará para sempre. Disse que me agarro à raiva, ao regozijo dessa curiosidade sinistra. O amor só me magoa.

 

 

Quero que a minha família compreenda que, quando acabar com a minha vida — um ato sobre o qual não têm poder de decisão —, entendendo-me, farão o ato supremo de amor e compreensão e deixarão de manipular o meu tempo. Isso só me corresponde a mim. Não é que não os ame, mas não penso neles quando não estão cá, não podem acompanhar a minha dor quando não estão cá e não podem passar o resto da vida deles ao meu lado.

O amor já não espera por mim, vem e vai, nunca fica comigo. Iker, especialista nos meus suspiros, era o único capaz de o fazer.

 

* * *

Espero passar o teste e sair daqui. Se quero ganhar este jogo de xadrez, só disponho de um movimento para fazer com que Paloma acredite que não quero acabar com a minha vida e esse movimento é uma representação perfeita.

Não será fácil. No seu momento, num ataque de raiva, descrevi muito claramente quais eram as minhas intenções. De alguma forma — de alguma forma estúpida — queria, desesperadamente, que ela me entendesse. Que agisse como pessoa e não como psiquiatra, que sentisse empatia pela minha causa e me deixasse morrer. Com esta dor, não posso viver. Foda-se, é tão fácil de entender!

 

 

 

 

 

— Hora de tomar o pequeno-almoço e, depois, hora da assembleia — diz a auxiliar da enfermaria.

Mal consegue entrar para além da porta: Entre a visita da minha família e o espaço que o seu amor incómodo ocupa, o quarto está cheio. Fica estupefacta.

— Só se admitem duas pessoas por visita e… nem sequer é hora de visita — acrescenta, olhando para os meus pais e para o meu irmão.

Aqui, é tudo tão frio. Coisa que, neste momento, me dá jeito, prefiro lidar com pessoas que não se veem obrigadas a mostrar o seu amor e não me fazem sentir culpada. Disse: Raiva, regozijo e curiosidade sinistra.

— Desculpe, mas hoje é um dia especial — diz a minha mãe. Com educação, mas com uma contundência que esmaga a auxiliar.

Aí está o seu amor. Na verdade, passou toda a vida entre a mãe e a filha, como se o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado. É uma massa moldável e flexível que nos envolve como uma luva de látex da sala de cirurgia. Dificilmente pode quebrar-se. Mas fá-lo agora. A sua força não é suficiente para que queira continuar a viver. À medida que a minha mãe se afasta, a luva de látex do seu amor começa a esticar-se até se romper, deixando-me uma chicotada de dor como lembrança. Sinto-me muito culpada cada vez que a vejo: Deu-me a vida que, agora, quero tirar. Vou repetir: Raiva, regozijo e curiosidade sinistra.

— O que se passa hoje?

— Exageram — acrescento. — Hoje, vou ter o teste de risco suicida. Outra vez.

— Ah! — A auxiliar está habituada a palavras como risco e suicida. — Não é habitual que a família venha.

— A minha família não é habitual — digo, com carinho e admiração. Sou tão má, por querer morrer.

— Quando faz o teste?

— Ao meio-dia.

— Então, deve tomar o pequeno-almoço e, depois, ir para a sala de terapia. Vocês podem esperar na cafetaria, se quiserem. — Levanto-me, resignada. Foda-se, aqui, tiram-nos a liberdade de decisão para tudo. Quero ir à assembleia? Não. Quero viver? Não.

 

 

A sala de jantar da ala da Psiquiatria é algo digno de ver. Ao meu redor, há pessoas que estão aqui e pessoas que estão ali. Pessoas que parecem que mascam pastilha elástica, quando, na verdade, estão a conversar. Com elas próprias ou não.

— Não consigo suportar isto — diz o doutor Benítez. Talvez a denominação de «doutor» desperte outras expectativas, mas é apenas mais um paciente. Ninguém é imune a isto da saúde mental. O meu colega levanta-se e afasta-se para voltar e assim sucessivamente.

É um homem que está sempre cabisbaixo. O burburinho dos seus pensamentos pesa tanto que o faz andar dessa maneira, encurvado. As suas gotas de suor caem para o vazio, interpondo-se nos seus passos, no seu deambular contínuo. Nunca se dirigiu a mim. Parece que as suas palavras não têm sentido, entrelaça conceitos de física, política, filosofia e história até nos fazer perder o fio à meada. A minha opinião? Faz com que todos cheguemos ao limite da nossa inteligência. Quer dizer, põe o nosso intelecto tão à prova que chega um momento em que desligamos e decidimos tornar-nos tolos. O doutor Benítez volta a sentar-se na sua cadeira. Embora a sua angústia me faça pensar que voltará a levantar-se. É uma angústia cerimoniosa.

— Sente-se bem? — pergunta uma enfermeira.

— Lamento muito, só que não consigo… Fui incapaz de resolver o logaritmo do teorema de hoje e não consigo seguir em frente até o fazer. Tenho de o fazer bem. Tenho de o fazer bem… — Levanta o olhar, tenaz, mas respeitoso.

— Se não se sente bem, podemos dar um passeio — sugere a enfermeira. Parece que se teletransportou. Foda-se, vigiam-nos bem da guarita.

— Devia voltar para o meu escritório — refere-se ao seu quarto —, e continuar com o teorema. Podem dar-me outro lápis? Talvez a densidade da grafite do lápis tenha influenciado o meu fracasso. — E aí está a razão por que os outros o enquadram na loucura e desprezam o resto das suas mensagens.

Podemos entender que acreditar que a mina de um lápis pode influenciar a resolução de um logaritmo é uma loucura e isso dá-nos permissão para invalidar o resto das suas mensagens. Devia ficar claro: É mais inteligente do que nós. Apesar da especulação da grafite do lápis.

— Podia deixar a sua inteligência descansar um pouco antes de a pôr a trabalhar, doutor — digo.

O doutor Benítez observa-me com um sorriso minúsculo e aceita o passeio com a enfermeira. Como taquígrafa, sinto uma responsabilidade, devia copiar literalmente o que diz para que as suas ideias nunca abandonem este mundo. Oferece conhecimento em troca de os outros decidirem tornar-nos idiotas. E isso dá-me raiva. A raiva faz-me sentir. As lembranças felizes… matam-me.

Mas já nunca mais serei taquígrafa.

A terapeuta ocupacional espera sentada numa cadeira, com a sua bata e o seu sorriso. Em redor, estão os meus colegas de prisão, embora ainda não tenham chegado todos.

— Esperamos mais cinco minutos e começamos — diz, cumprimentando-me com um assentimento de boas-vindas. A terapeuta é uma jovem morena, que põe o cabelo atrás da orelha de poucos em poucos minutos e que tem um olhar amplo e sereno.

Sento-me numa das cadeiras enquanto recordo uma época em que nem sequer tinha forças para me vestir ou tomar banho e uma auxiliar da enfermaria tinha de me ajudar a puxar o autoclismo. Agora, até participo nas terapias. É um teatro para poder fugir daqui e continuar com o meu plano de suicídio. Parece que a minha vontade de viver o suficiente para encontrar uma forma de morrer me impulsiona a melhorar. Pelo menos, é o que alguém que me veja de fora pensará.

A terapeuta ocupacional, Blanca, tem um plano de atividades meticulosamente elaborado, com um horário quase militar, mas intuo pelos seus comentários que nem sequer ela está de acordo com o ritmo que nos impõem. Talvez sejam ordens de cima ou outro motivo. Talvez ela também não tenha a opção de escolher nesta maldita ala psiquiátrica.

Às segundas, quartas e sextas-feiras participamos numa atividade a que chamam «oficina». Qualquer pessoa que o veja pensará, basicamente: Artes Plásticas. Eu também pensei, mas um dia aconteceu uma coisa na sessão:

— Não gostas do quadro — comentou Blanca.

Também não era uma conclusão difícil, estava de braços cruzados à frente de um desenho estúpido de uma paisagem marítima feita com moderação. Não quero ir às Bahamas, quero ir à merda. Embora deva dizer, a seu favor, que não me deu um desenho infantil estúpido para colorir. Não deixei de ser adulta quando me internaram aqui e isso devia ficar claro.

— Que sentido tem pintar? É para crianças — declarei, quase a cuspir. Raiva, regozijo, curiosidade sinistra e cuspo.

— As crianças são muito sábias. — Fiz uma careta cética, para ver que história tinha para me contar. — Elas sorriem enquanto pintam e são peritas na hora de escolher como encontrar esses sorrisos. Às vezes, os adultos esquecem-se de que a satisfação pode ser o único propósito de uma atividade. Não me julgues por tentar imitar a genialidade das crianças, embora falhe. — Faz uma careta simpática, como numa reflexão nostálgica. — Diz-me, o que mais odeias daqui?

— Não poder tomar decisões.

— Escolhe.

Abriu as portas de um armário. Um que a obrigam a manter fechado à chave, mas ela não o cumpre. Confia mais em nós do que nas regras.