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Sumário

Página do Título

O autor

Aves Migradoras

O sineiro de Santa Agatha

Pequeno drama na aldeia

A Provincia

O juramento da Condessa Esther

Coronado

A Eminente Actriz

About the Publisher

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O autor

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José Valentim Fialho de Almeida, mais conhecido apenas como Fialho de Almeida (Vidigueira, Vila de Frades, 7 de Maio de 1857 — Cuba, 4 de Março de 1911), foi um jornalista, escritor e tradutor pós-romântico português.

Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades, Vidigueira, no dia 7 de Maio de 1857, filho de um mestre-escola.

Realizou os estudos secundários num colégio de Lisboa, entre 1866 e 1871. Empregou-se numa farmácia, e formou-se em Medicina, entre 1878 e 1885. Em 1893 voltou à sua terra natal, onde desposou uma senhora abastada, que faleceu logo no ano seguinte e da qual não teve descendência.

Nunca exerceu medicina, tendo-se dedicado ao jornalismo e à literatura. Tornou-se lavrador em Cuba, mas continuou a publicar artigos para jornais, e a escrever vários contos e crónicas.

Entre as suas obras mais notáveis, encontram-se os cadernos periódicos Os Gatos, redigidos entre 1889 e 1894, que seguiram a mesma linha crítica da obra As Farpas, de Ramalho Ortigão.

A sua carreira literária foi pautada por um estilo muito irregular, baseado no naturalismo. As suas principais inspirações foram as sensações reais, mórbidas e grosseiras, com temas repartidos entre os cenários urbanos e campestres. Nos finais do Século XIX, o seu estilo tornou-se mais decadente, em concordância com os ideais em voga nessa época.

Fialho de Almeida faleceu a 4 de Março de 1911, na localidade de Cuba, onde foi sepultado.

Na sua campa está registada o seguinte epitáfio:

Miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca

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Aves Migradoras

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—Mas tu és minha amiga, balbuciava a creatura querendo tomar-lhe as mãos n'uma supplica desolada. Devias ter dó d'esta fatalidade que me leva ao encontro de Ruy. Oh, tu não sabes! A idéa d'elle tira-me o somno, embebeda-me, convulsiona-me, vai commigo a toda a parte. Tu ao menos tiveste familia, irmãos, alguem. A mim nunca ninguem me quiz. Os garotos puxavam-me os cabellos, meu pai batia-me em estando embriagado. Aos dez annos puzeram-me fóra, que fosse trabalhar. E andei descalça atraz dos porcos, ia aos sabbados pedir esmolas ás portas dos ricos. Um verão agarram-me a furtar uvas n'uma vinha: o vinheiro era um bruto, jogou-me um tiro; e cheia de sangue, quasi morta, uns cavadores que passavam, foram levar-me a casa da minha madrasta. Mas á embocada da aldeia, como eu ia estendida n'uma padiola de ramos, a senhora marqueza viu-me passar da sua janella, e por caridade, recolheu-me. Alli se fôra creando, a fazer companhia ao menino. Ruy n'esse tempo era um despota, obrigava-a a saltar muros, a pendurar-se de cordas, a fazer de cavallo. E batia-lhe. Em compensação Luiza adorava-o com um amor de cadella agradecida. Do fundo da sua humildade, nascia-lhe um deslumbramento inexplicavel, uma curiosidade, uma cegueira de Ruy. E nervosa, franzininha, como a figura d'uma borboleta na melancholia pallida d'um sonho, adquirira já precocidades: e os seus grandes olhos remordiam na belleza do pequenito, substractos de muitissimas aspirações. Na quinta, os trabalhadores ás vezes perguntavam-lhe:

—Queres ser amiga além do menino?

Ella abria os seus olhos vorazes, dizendo com a cabeça que sim. Entrementes o pequeno ia crescendo. Era alto, delgado, divinamente perfeito. Tinha já essa attitude desinteressada d'enthusiasmos, indifferente aos impulsos fortes, desdenhosa, petulante, das creaturas nascidas em meios altos, e destinadas ao predominio. As suas mãos davam cobiça, brancas de cera, e com detalhes mimosos d'obra prima. Oh, mas a bocca, inexplicavel, trazia embrionada na esculptura dos labios, todas as florações mysteriosas d'uma ascendencia patricia—bocca de chefe pela austeridade, de diplomata pela ironia, e de mulher pela doçura com que a descerrava, em sorrisos cicatrizadores das esgarçaduras que a sua altivez antes fizera. Quando elle veio do collegio a primeira vez, empallidecera: mas a expressão dos seus olhos era uma coisa indescriptivel d'encanto, de melancholia e suavidade.

Á enformatura tenra, oscillando como a haste anemica d'uma flôr de estufa, viera juntar-se o mysterio poetico d'um espirito insexualmente delicado, cujas infantilidades corrigia a cada instante um fogo-fatuo d'idéa, e a graça grave, indecifravel cambiante, da esphinge que contempla, sem desmentir jámais a prega austera da bocca. Era já, n'essa idade, a creatura de gostos raros, avara de palavras e gestos, fria, correcta, com preguiças d'ataxica e relampagos de crueldade na pupila augusta de Cesar, adorando o luxo dos palacios antigos, tendo a mania do bibelotage, e antegostando, como todos os homens da sua familia, uma especie de deleite perverso no desnortear pelo testemunho das suas impressões prevaricadas, a sensibilidade reputada normal pela outra gente. Essa susceptibilidade depressa se embotava todavia, reclamando intercadencias, e por vezes derivando em passageiras allucinações. Indole toda de nuances, refrangida d'um sangue com predominio de soro, como uma luz coada através da sêda d'um biombo, elle parecia arvorar o pallido como flamula de guerra da hoste macabra dos nevrosados, cuja vida o tédio do vulgar envenena. Por seu lado, Luiza conseguira ganhar pela viveza dos seus expedientes e remoques, o espirito da senhora marqueza, ao tempo enlanguescido no estranho mal que ia varrendo as gentes da sua raça, mercê das allianças consanguineas em que esta teimára immobilisar-se. Em cinco annos, nada restava já da pequena mendiga chegada ao palacio n'uma padiola de ramos, com os cabellos nos olhos, os pés enlameados, coberta de trapos, e resequida n'uma magreza dolorosa. Era uma bruna de beiços rubros, dentes pequenos, com fórmas d'esculptura e sadias destrezas d'amazona. Desde a partida de Ruy para Campolide, que ella não tinha na casa occupações definidas. Conservavam-n'a, um pouco por gratidão, e por amor tambem, um quasi nada. E assim era um bocado de tudo—leitora, enfermeira, guarda das estufas, esmolér-mór, creada de mesa e bordadora—e assim podera conservar a sua selvageria d'origem, tão familiar aos serviços da propriedade.

Luiza era intelligente: alli se fôra educando, aprendendo, adquirindo pela familiaridade da boa companhia e da riqueza esparsa em obras de gosto, através dos velhos aposentos, essa cultura interior de sentimentos, essa exoticidade de preferencias, essa indiscutivel distincção de conversar e receber, que a tornaram depois tão appetecida cá fóra—isto realçado co'a turbulencia da creatura nascida em pleno campo, espojada nos fenos, e rebelde no sangue, longe das peias deformantes da sociedade. Só de longe a longe, á força de hydrotherapias complicadas, a senhora marqueza obtinha uma ou outra hora de vida serena, e conseguia furtar-se aos lugubres nervosismos da enfermidade. Era o feitio de Ruy, menos a juventude, mais a impaciencia. A custo lhe sahia o espirito das abstracções e somnolencias em que ficava embrenhado horas e horas; e exiguamente, distillando a lucidez como uma essencia, gotta a gotta, n'um ting-ling monotono. A sua vida passava-se n'um canto de capella, entre sombras, enterrada n'um fauteuil com baldaquino, e só de lá sahia para se entregar ao cultivo de quatro ou seis predilecções extravagantes. Resentia-se do claustro onde passára os primeiros annos de educanda, e da côrte onde tinha gosado os primeiros mezes de casada. Era uma natureza extatica, adorando as pompas do culto, os requintes subtilisados da lithurgia, os movimentos dramaticos do orgão no instrumental das grandes cerimonias—um pouco de mysticismo, n'um pouco de miguelismo, n'um pouco de idiotismo,—com paixões de plantas monstruosas e aves singulares, alimentando-se de fructas, vestida de antigos damascos e pompadours de raminhos, e tendo sempre bolos d'ovos no beniterio do seu genuflexorio. Era vêr a ternura de Luiza durante as crises da boa senhora, e a meiga servilidade da sua voz rebuscando as mais enternecidas musicas, para pedir perdão de lhe não ter adivinhado mais cedo o pensamento.

Essa ternura, Luiza não a fazia nascer exclusivamente da gratidão que nutria pela castellã: vinha antes da emoção que Ruy lhe dava, da febre que lhe produzia a lembrança da sua belleza fruste e singular. Todas as dedicações se fundiam n'ella, e assim todas as especies de desejos inquietantes. Vinda d'uma mancebia d'aldeia, onde rolavam a toda a hora palavras bebedas e acções quasi medonhas, Luiza achára entre os moços da quinta, nas conversas surdas da cozinha e da arribana, á hora da ceia, a continuação do que vira e ouvira em casa da madrasta. Fôra preciso um cuidado assiduo, nos primeiros tempos, para refazer-lhe o vocabulario, e transviar para intuitos mais limpidos, a tendencia de vicio que ella trazia no sangue, em purulentos coagulos. Se a educação e o mimo em que fôra subindo, á proporção que se insinuava nas sympathias do palacio, lhe haviam feito a lingua casta, e a expressão virginea, já por fim, no fundo, o terrivel sangue conspirava n'ella, co'as herdanças fataes da vida airada, phosphorejando ardores que a nubilidade ás vezes desencadeava em verdadeiras procellas. Inda creança, o seu amor pelo Ruy já não podia dizer-se immaculado. Não era esse idyllio de bambinos colligados na mesma adoração por uma boneca, nem a celeste comedia, inolvidavel, de duas cabecinhas attentas para o mesmo malmequer que se esfolha á beira d'um campo de trigo, sob o guarda-sol de sêda que a ama baloiça, sorrindo de os vêr tão sérios, os dois noivos pequeninos. Mas uma paixão d'inferior que se deslumbra pelos filhos da raça cujas perfeições não pôde igualar, paixão com haustos de posse, indeclinavelmente physica, prematura, perversa, e cheia d'estonteamentos já torpidos. Com a idade, aquella ancia de Luiza não se corrigia nem purificava, senão ia crescendo, accentuando, colorindo, na medida da sua adolescencia cada vez mais radiosa em seducções.

Nas férias, mal se sonhava o dia em que Ruy devia chegar, já ella não parava quieta em parte alguma. E eil-a passando os dias nos aposentos do menino, revolvendo alcatifas, mudando o logar do leito, perturbando a ordem dos quadros, a disposição dos mobilamentos, agrupando plantas, pelo que sabia das predilecções de seu amo—pondo stores e biombos em todos os portaes por onde francamente entrassem a luz e o ar. Na casa, os creados sorriam, como quem sabe de tudo—gallinha canta... E os ditinhos pullulavam. Mas um que era já ruço, muito gordo, quasi sacerdotal pela rigidez da compostura, costumava deter-se á porta dos quartos, tossindo devagarinho, a vêl-a trabalhar.

—É o Ezequiel menina Luiza.

Ella gostava d'esse, que a defendia sempre das animadversões da creadagem, e por toda a parte a cercava de deferencias tocantes. Mesmo, das suas palavras paternas, ruminadas n'um fundo de reflexão um poucochinho canalha, vinha-lhe uma sorte de lisongeira coragem. Ezequiel era o unico que parecia não pôr em duvida a ascendencia de Luiza sobre a outra creadagem. Emtanto elle ás vezes punha-se a esquadrinhal-a, na sua bonhomia de velho, deixando cahir palavras descuidosas aqui e além, para a fazer dar á lingua, e espaçando reticencias de proposito, no sitio onde a rapariga, simploriamente, logo ia prender revelações.

—Muitos parabens, menina Luiza. Faltam só quatro dias.

Ella, fingindo não entender:

—Ora essa! Para que, Ezequiel?

Elle ia entrando, punha o espanejador ao canto da porta, enxugava os dedos da pitada ao avental.

—Estas raparigas, estas raparigas!... E d'ahi que tinha? Não ha tanta menina pobre casada com pessoas grandes? Eu sempre queria vêr...

—Vossê, Ezequiel, nunca tem melhores lembranças. Ora o mofino!

E o velho, conciliador:

—Acaso admira que vossemecê goste de Ruy? O contrario é que espantava. Creados de pequeninos, no mesmo berço quasi... E olhe que têem muita força os beijos a que uma pessoa se acostuma de creança.

Ella empallidecia e córava sem escrupulo, surprehendida no divino tormento que lhe extasiava o espirito em fogos multicôres.

—Olhe cá, Ezequiel. Cada um no seu lugar. O que diriam de mim, santo Deus?

—Coisa nenhuma, coisa nenhuma. Todos vêem como a senhora marqueza trata comsigo. Zús d'aqui, zús d'alli, está-lhe sempre a chamar minha filha. Olhe que é muita amizade, é amizade de mais para uma servente. Eu sei que isto enfurece os invejosos. Não faça caso, menina Luiza, não faça caso.

—Ah, não tenha medo, Ezequiel.

—E o menino Ruy então, não fallemos. Esse gosta, e gosta muito. Até cartas lhe manda. Não se faça encarniçada, menina Luiza.

—O disparate!

—Já cá sabemos tudo; pois então!

—Crédo! Santo Nome! São cartas que elle manda para a senhora.

—Para a senhora, sim, para a senhora mais nova. Eh! Eh! fazia elle batendo as palmas, n'um tom maligno d'avô condescendente. Essa cama que fique bem fofa, essa campainha que fique bem perto. Rapaziada, rapaziada!

Ouvindo estas coisas, Luiza abandonava-se, perdia a cabeça. E do coração subiam-lhe á bocca ondas de confidencias, gritos d'alma, brutaes franquezas de rebelde. A intensidade do seu sonho interior era tão forte, tão sobreexcitado o delirio da sua imaginação, que para seguir-lhe a trajectoria, Luiza compromettia-se mentindo, gabando-se de scenas imaginarias, sem quasi perceber que se calumniava. Não, Ruy não lhe escrevia. Não, Ruy não gostava d'ella. Mas Luiza, Luiza morria por tel-o ao pé de si. Esses dias eram uma doidice, e Luiza não dormia, Luiza não comia, Luiza não dava attenção á leitura, Luiza estava distrahida á missa da senhora marqueza. A cada instante, omissões no serviço, pequenos confortos descurados nos aposentos, portas abertas deitando correntes d'ar, stores erguidos nas janellas, que endoloriam os olhos da enferma, apenas familiarisados co'as penumbras cinzentas do seu canto d'oratorio.

Então a fidalga impacientava-se: as impaciencias traziam-lhe o nervoso. Era um horror. Para poisar os dedos no braço de Luiza, abrir o livro de rezas, dar uma dentada n'um bolo, a pobre creatura estava minutos em sobresaltos choreicos, debatendo-se contorcida, sentando-se e erguendo-se apenas se sentava, lançando da bocca palavras improprias, repetindo certos adverbios no meio das phrases: e amargurada, presa de terror, por ter a consciencia de não estar fallando bem.

Raro, raro, o senhor marquez que residia em Lisboa, na roda dos alegres viveurs d'então, se aventurava até áquelle deserto da quinta, calado, religioso, e com uma expressão claustral d'austeridade. N'essas poucas visitas, sua excellencia não vinha por certo estancar saudades de sua mulher, senão solicitar da pobre dama, mais uma vez, assignatura para alguma hypotheca que o auctorisasse a proseguir na sua vida libertina de velho rapaz. Chegava então pela noite, em caminho de ferro, estava até ao outro dia, e na madrugada seguinte, zut! elle ahi vai. As palavras que os dois esposos trocavam, eram uma simples formula de deferencia imposta pelo orgulho ás cogitações chocarreiras da creadagem, em que ella buscava mostrar o desdem que nutria pelo esposo, e o esposo parecia artificialisar ainda mais, a sua amabilidade correcta de marido desencantado. Na primavera comtudo, a visita do marquez prolongava-se d'alguns dias, como era o tempo das caçadas. Trazia então quatro ou cinco velhos amigos, alguns creados, e as matilhas de galgos requeridas para a diversão. A marqueza recluia-se mais, se é possivel, no seu angulo de palacio, pretextando que a luz lhe encadeava a vista, que o ruido lhe exasperava a migraine, e o aspecto da alegria dos outros mais fazia contrastar a sua mortal e esmaecida tristeza de antiga moribunda. E os caçadores ficavam sós, livres inteiramente para deixar correr sem respeito, n'aquellas duas ou tres semanas de campo, uma impetuosa existencia de barões feudaes, accesa nas risadas do bom vinho das cavas, nas correrias em pós das rapozas e lebres, e castigando-se á noite, finda a ceia, Deus sabe, entre os braços das mulheres que Ezequiel recrutava discretamente pelo burgo, na grande sala de lambeis gobelinos, com mobilias marchetadas de quatro seculos. Todas as manhãs, Ezequiel ia aos aposentos da senhora marqueza deixar galantemente um ramilhete da parte de seu amo, que á volta da caça lhe mandava em plateau tambem, a melhor peça da correria. Os fidalgos de ha trinta annos eram ainda mais inuteis que os de hoje. A mordomos e intendentes abandonavam a gerencia dos seus negocios interiores. Restos d'altivez faziam-lhes encarar desprezivelmente o que elles chamavam classes subalternas. Isto contrastando nas suas horas lucidas com a intimidade que a mór parte abria a fadistas e toureiros, nos momentos de vinhaça, por esses bordeis que ficaram celebres em cantigas do fado. Este marquez de Selmes foi como os outros, um perdulario espargindo fortuna e forças no rodilhão dos prazeres mais em voga ao tempo. Em Lisboa, dava talher a uma turba de litteratos, graciosos e moços de curro, com quem elle gostava de mesclar os seus jantares d'intimos, por manter o ar d'um grande senhor amigo das artes, requestado pela popularidade dos varios conventiculos elegantes da capital. E na quinta, aquelle mundo heterogeneo de parasitas representava-se um pouco, mais resumido, pelo critico Lagoaças, Alberto M., Marquez das Flôres, grande pegador de bois, pai nobre Cezario, e festejado Mattos, que fazia rir a sociedade referindo historias da Lisboa duvidosa, no seu aranzel comico de tatibitati. N'aquella primavera, a surpreza do marquez fôra Luiza, a grande Luiza que lhe surgia de repente uma senhora, e cujas infantilidades o velho galante distrahidamente afagára até ahi. Lagoaças, que era forte apreciador de fructos no cedo, foi o primeiro a chamar-lhe a attenção para a deliciosa frescura d'aquella maçã prohibida, que promettia co'os seus acres succos perfumar a bocca de quem lhe cravasse os dentes primeiro. Foi então um movimento geral de galantaria no grupo dos caçadores, sobre Luiza. Com a sua nonchalance habitual, o marquez dava carta de corso aos amigos, admittindo-lhes correr palacio a qualquer hora, em pós da famosa presa, se tudo fosse discretamente acontecido. Quem mais lesto e galanteador se antolhasse, mais esperanças poderia nutrir de successo. Alberto M. começou uma elegia.

Deliciosa aranha delicada,

E com pennugens d'oiro revestida:

Ligeira, dôce, setinosa e leve...

Tens a peçonha lubrica mettida,

Na caricia das patas côr de neve.

.................................

Marquez das Flôres era outro genero: confiava na mocidade viril dos seus braços, e nas casacas vermelhas de caçador com que apparecia todas as manhãs no grande pateo da casa, soado o primeiro hallali nas trompas dos monteiros. E a batalha começou, estando Ezequiel empenhado em fazer triumphar o marquez.

Uma manhã fazia Luiza o ménage dos passaros, sobre o terraço, Ezequiel que chega d'acaso. Bons dias d'um lado, bons dias do outro, e começou uma conversa d'introito, ao fim da qual, sem se saber como, Ezequiel já fallava nas graças de seu amo, ideal dos fidalgos generosos, nata dos amigos commodos, e non plus ultra dos amantes discretos. Não é verdade, menina Luiza, não é verdade? Ui! que gorgetas elle lhe dava! Pares de calças que lhe abandonára, novinhos em folha! E a sua maneira de tratar então, como d'igual para igual!

—Boa pessoa, fez machinalmente a rapariga, é muito boa pessoa.

—Uma coisa não sabe a menina. Elle está doido por si.

—Ai! o tramouco do velho...

—Diz que a ha-de fazer muito feliz.

—Brr! Pois quem somos nós?

—Tanto que me encarregou...

—Vossê alcovita agora, Ezequiel?

—Desejaria vêl-a amparada, menina Luiza. Conheci-a pequena n'esta casa, vi-a medrar e fazer-se mulher, e gosto de si como os avôs das netinhas tagarellas. D'ahi, não promette grandes dilatamentos a vida da noss'ama: cedo, tarde, quando menos cuide, ahi vai ella caminho dos anjos. E fallando claro: a situação que ella lhe fez n'esta casa, é uma coisa postiça que lá fóra a menina não poderá continuar sem uma protecção. Quer que mudemos de conversa?

—Posso, Ezequiel, isso posso. Não digo a servir, mas escolhendo rapaz com quem me case.

—Da aldeia, da quinta... Que creação é a d'esses homens? Afeitos ao trabalho das terras, querem mulher da sua condição, que sache, que monde, que moireje, e vista d'estamenha, e tenha rijeza p'ra lhes parir um creanço, em todas as paschoas de Deus. Além d'isso, duas naturezas desiguaes na educação—marido ciumento da mulher que não merece—mulher desprezando o marido que a não soube captivar. D'ahi zangas, ralhos, maus tratos, que sei eu? Ao passo que sendo rica, poderia encontrar um moço d'estimação que lhe fizesse a vida doirada, n'uma casa cheinha como um ovo.

—Mas rica, rica... Vossê conhece a minha gente. Morrem todos de fome, lá por casa. Se me não comem os olhos, é que não podem tirar-m'os sem que eu dê por isso. Ser rica, de que modo, por que processo? Diga.

—Eu a bem dizer, não tenho plano. Idéas vagas, muito d'alto, que se não podem assim contar a uma rapariga nova e com principios diversos dos meus. Idéas de velho que viu mundo e sabe chamar os bois pelo seu nome. Olhe. Quando eu era rapaz tive uma patrôa viuva, entradota, mais que medonha—inda esbraseada por noivar, pobre senhora!—que uma noite me beliscou o assento, de passagem por um corredor ás escuras. Eu não quiz: gostava muito mais da cozinheira: opiniões de galucho, menina Luiza! Fui p'ra rua como era de justiça. Quatro annos depois estava o cocheiro nomeado visconde do appellido da minha antiga adoradora. Perdidinha por mim, menina Luiza, perdidinha. Carago! E eu tão bruto que não quiz! Se lhe ponho as calças em cima, andava agora de sege por essas capitaes.

—Fallando claro, o teu sermão quer dizer: amiga-te com o senhor marquez, rapariga. Não é isto? Por sua morte, talvez sejas rica; em vida d'elle por força has-de ser feliz.

Ezequiel não retrucou, mas poz-se a contar historias de raptos, vergonhosos amores, coisas cynicas e patuscas, sem apparente colligação de sentido. A voz fizera-se-lhe surda, d'uma firmeza espaçada que lhe espargia na face aspectos graves de prégador e de magistrado. E recapitulou da prédica, pitadeando, que a vida era um quotidiano mercado onde a gente adquiria o que por acaso tivesse de sobrecellente. Manoel Antonio Ferro, sahira da aldeia com elle, Ezequiel, em 40, com tres pintos no bolso, e o saquito da roupa branca. Entrado marçano n'uma loja do Porto, roubou o dono: primeira façanha, vá vendo... Foi ao Brasil mercandejar nos escravos, volta millionario. Chegado a Lisboa n'um estadão de principe, recommendado até aos olhos, nenhuma casa se abriu para o receber. Trazia na consciencia duas mortes, ao que se contava, e uns poucos de processos por contrabando e moeda falsa. O homem não se ralou muito co'a recepção dos patricios. Fez tranquillamente um palacio na Junqueira, talhou jardins, comprou herdades, derribou azinheiras, plantou vinha, fez eleições: e um bello dia, quando já entrava a ser necessario, deu doze contos para escolas, reclamando farda de moço fidalgo, pelos Ferros de Santo Thyrso, que eram ladrões d'estrada e sapateiros. Toda a gente entrou a chamar-lhe venerando, desde os doze contos. Hoje, ninguem funda um banco sem o nomear director, e não se inaugura uma escóla sem elle lá ir botar discurso, com os seus ares de pai-avô. Está par, está conde; e se ainda não põe na cabeça a corôa real, é que já tem uma de cornos, mimo da mulher, a sogra d'este Marquez das Flôres que ahi está de visita. A duqueza de Montes, menina Luiza, hoje velha, e tão virtuosa senhora, que manda rosarios da Terra Santa a noss'ama... era uma dançarina do primeiro café-concerto que se fundou em Lisboa, cheia de molestias. Depois da dança, vinha p'ras mesas embebedar-se com genebra, sentada no collo de quem lhe desse dois pintos. Eh! Eh! Tudo se vende e se compra: caras geitosas, virgindades velhas e novas, familia, patria, salvação, condecorações, reputações, sapatos d'ourello e garrafas de vinho. Quer um bom camarote no reino dos céos, menina Luiza? Dê quatro contos ao papa: manda-lhe a chave na volta do correio. Faz-se de côres? Ora adeus! Não digo que seja dos Evangelhos, esta doutrina. Mas é o resumo de cincoenta annos de trambulhões e miserias. Seja-me rica! A primeira felicidade é ter que vender. Mas a unica, a verdadeira, é poder comprar.

—Ezequiel, vossê tem a alma ruim.

—Por lhe confessar que só os imbecis se portam bem? Por lhe dizer que este mundo é dos descarados? Ai, se eu tivesse podido convencer-me d'estas coisas na sua idade! Não traria agora senão a libré de mim proprio, e o mundo havia de fazer o que me viesse á cabeça. Faça o que quizer, menina Luiza. Mas esta fabula é clara como agua. O senhor marquez gosta de si. Qualquer dia a senhora marqueza, trrr... foi-se. Que ha de fazer a Luizinha? Estará resolvida a dar-se por mulher ao primeiro labrego que venha? Mas creatura! Voltar para os casebres da sua madrasta, d'onde fugiu a honra com medo aos piôlhos? Brada aos céos! Viver pura como a luz, uma vida escura como a noite? Olha a tolice! Despir trajos de senhora, deixar este palacio e os confortos da vida farta, a que se afez desde pequena?.. Bau! Bau! não tem coragem. Isso sim! Vá, tane as mãosinhas em trabalhos que humilham e não salvam da pobreza e da fome. Hum! Hum! menina Luiza. Esses olhos não mentem no que deixam adivinhar. Venda, venda! O senhor marquez gosta de si.

As lagrimas saltavam já dos olhos de Luiza.

—É mais facil morrer, disse ella.

—Pois minha rica, não será rondando o Ruy noite e dia, mais de noite que de dia, que a menina ha de ir á cova de capella e palmito. Gostar do filho, tem todos os inconvenientes de gostar do pai, menos as vantagens. Esse pequeno é um cabeça louca; póde fazer apetite ao femeaço—o que não faz com certeza é uma bizarria que a deixe independente a si. Porque não póde! Porque não tem! D'ahi, tarefa inutil perseguil-o. O fedelho por ora não larga os amiguinhos do collegio. A menina não tem fortuna, parece-me ambiciosa... Venda. O seu genero está na alta. Dezoito annos. Uma lindeza! Venda. Bocca de morango, voz de seraphim... Venda, venda. O senhor marquez gosta de si.

Era o tempo das florações e dos ninhos. Divinas juventudes explodiam d'amor nas seivas da terra, na luz e nos perfumes do ar. O céo dôce, todo o campo uma distillaria d'essencias: lá baixo, na aldeia, as romarias começavam, e os casamentos tambem. Luiza guardava silencio, co'os olhos longe, vendo subir a manhã pelo cantar dos passaros. Comprar e vender. Vender e comprar. Uma carinha bonita, um corpinho perfeito. O senhor marquez gosta de si.—E Luiza chorou todo o santo dia.

N'essa cabeça de fogo entretanto, surgia cada vez mais fascinadora, a imagem de Ruy, toda abrasada d'estranhos prestigios: e diante d'ella ardendo sempre o lampadario d'um culto cego e inexoravel. Com o pequeno tinham vindo á quinta passar as férias da Paschoa, tres ou quatro dos seus companheiros mais intimos—Palhalvo, já gordo aos quinze annos, cujas bochechas tinham o geito d'estarem soprando uma desconforme trombeta, á semelhança d'esses anjos papudos que fazem apotheose ao calix mystico, nos frontões das capellas-móres—Mattoso, filho d'um criado velho, que a senhora marqueza destinava ao sacerdocio, e dominava o grupo com os seus modos severos de preceptor—Jorge Forjaz, primo d'Albertina, era o litterato, e recitava Rodrigues Cordeiro e Palmeirim nos banhos da Nazareth e Praia da Vieira—emfim Biscaya, especie d'aranhiço adunco, côr de feno, sempre tossindo, era um engeitado que o marquez recolhera e mandára ensinar, e cuja maldade e azedume transpareciam já nos seus dichotes de gaiato. Esta ronda de meninos bonitos, uns mais precoces do que outros, alvoroçava o palacio logo ao romper da manhã, extravasando nos pateos em exercicios de força e gymnastica, furtando beijos ás moças por onde quer que as topasse, partindo n'uma algazarra, em carretas de lavoira, para as searas onde mondassem raparigas, ou organisando correrias, d'onde os cavallos voltavam desferrados e cobertos d'espuma. Póde-se calcular o que estes diabos accrescentavam de desordem á volta dos festins do marquez: excepto Ruy, que ia ao almoço e jantar fazer companhia a sua mãi. Era a unica imposição tambem da boa senhora, ter o filho em toilette, defronte de si, nas refeições. E isto enchia d'importancia o pequeno, todo esforçado em infiltrar na melancolia austera da enferma, um raio da sua graça juvenil. Mesmo, o seu respeito por ella, timbrava em mimos, pieguices, ternuras, pequenas dedicações que a velha dama absorvia sem transluzir na face exangue emoção d'especie alguma.

Desde que Ruy chegára á quinta, a marqueza dispensava Luiza de lhe lêr as orações e velhos livros de pastoraes, villancicos ou novenas aos santos patronos mais dilectos. Era então Ruy o encarregado de lhe percorrer as passagens estimadas. Elle a tudo se prestava, com um tocante respeito de pagem amoroso, tentando seguir nos olhos d'ella o grau de satisfação que promovia, e evitando as crises com uma ligeireza d'alma adoravel e compadecida. Immovel por traz da cadeira da marqueza, Luiza servia-os, interpondo a enferma como medianeira innocente, no jogo galante em que ella buscava encasular a adolescencia do rapaz. Alguma vez este lhe dirigia a palavra, a buscar apoio n'uma asserção, a preferir o conselho de Luiza no tocante a qualquer pormenor de solicitude para com a mãi. E a alegria da pobre creatura, quando elle erguia aos olhos d'ella, os seus olhos picados de scentelhas leaes! N'essa alma de collegial, toda escrupulosa no froufrou da sua alvinitente plumagem, parece, nenhuma idéa de mulher passára ainda. E Luiza interrogava-se, sofreava-se, confusa, estonteada, aterrada das suas audacias, e sem coragem de revolver co'a sombra d'uma coquetterie, o lago azul d'aquella pureza celeste.