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Autor

A Vinha

A Feiticeira

Diario duma criança

Sacrificada

Sombras

Dezoito Annos

Solteirão

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Autor

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Ana de Castro Osório (Mangualde, Mangualde, 18 de Junho de 1872 — Sé, Lisboa, 23 de Março de 1935) foi uma escritora, especialmente no domínio da literatura infantil, jornalista, pedagoga, feminista e activista republicana portuguesa.

Nascida em Mangualde, a 18 de Junho de 1872, Ana de Castro Osório era filha de João Baptista de Castro (1845-1920), um reputado bibliófilo, notário e magistrado, natural de Eucísia (Alfândega da Fé), e de Mariana Adelaide Osório de Castro Cabral de Albuquerque Moor Quintins, natural de São Jorge de Arroios (Lisboa). Sobre o seu pai, sabe-se ainda que publicou um livro sobre "Questões Jurídicas" (1868) durante a sua estadia universitária em Coimbra, quando este era companheiro de casa de Teófilo Braga, e que viria em 1911 a julgar e aprovar o pedido de Carolina Beatriz Ângelo para ser incluída nas listas de recenseamento eleitoral. Ana era também a irmã mais nova do juiz, maçon e poeta português Alberto Osório de Castro.

Em 1895, residindo em Setúbal, e tomando como interesse o jornalismo, Ana começou a publicar os seus primeiros artigos e crónicas no jornal "Mala da Europa", sendo elogiada publicamente pelo político, poeta e escritor ultra-romântico português Thomaz Ribeiro. Para além das peças de carácter jornalístico, começou também a escrever, em 1898, diversas obras didácticas, romances, novelas, contos e peças infantis, incluindo a colecção de 18 volumes "Para as Crianças" (1897-1935) que lhe conferiu um lugar cimeiro como criadora da literatura infantil em Portugal .

Nesse mesmo ano, a 10 de Março, com 25 anos, casou-se com o poeta, publicista e membro do Partido Republicano Francisco Paulino Gomes de Oliveira, na igreja paroquial de Nossa Senhora da Anunciada, em Setúbal. Anos antes, tinha recusado veementemente o pedido de casamento de Camilo Pessanha, contudo, a amizade manteve-se até à morte do poeta, em 1926.

Com o virar do século, e o clima de instabilidade político-social existente na Europa, Ana de Osório Castro começou a focar os seus esforços na luta pela causa republicana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres, reflectindo muitas vezes esses mesmo ideais nas suas obras literárias, e assim tornando-se numa das mais reconhecidas pioneiras activistas feministas em Portugal.

Em 1905 escreveu "As Mulheres Portuguesas", o primeiro manifesto feminista português, seguindo-se a criação da revista "A Sociedade Futura", o "Jornal dos Pequeninos", a sua integração no Grupo Português de Estudos Feministas e ainda, em 1908, com o apoio do político republicano António José de Almeida, a fundação da organização e associação política Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP), no 2º andar do nº 6 da Rua dos Castelinhos, em Lisboa, juntamente com as médicas e sufragistas Carolina Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete, entre outras proeminentes mulheres da sociedade portuguesa de então.

Durante esse prolífero período, a escritora e activista publicou diversas obras e artigos de carácter politico e social, nomeadamente sobre o direito ao voto, à educação, ao trabalho e a importância da independência económica da mulher em caso de abandono ou viuvez, entre outros temas, não só na revista mensal da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, "A Mulher e a Criança", como também escreveu e fez distribuir, gratuitamente, folhetos de divulgação de normas educativas e de higiene para jovens mães, com o título "A Bem da Pátria".

Desempenhou ainda um papel de destaque no jornal setubalense "O Radical" de 1910 a 1911, fundou a Escola Liberal de Setúbal, as Edições Lusitânia, e tornou-se membro do Grande Oriente Lusitano , integrando a Loja Humanidade e adoptando como nome simbólico maçónico Leonor Fonseca Pimentel, em homenagem à revolucionária portuguesa do século XVIII. Durante a Primeira República, imediatamente após a implantação, colaborou com Afonso Costa, então Ministro da Justiça, na elaboração da lei do divórcio.

Pouco tempo depois, devido a conflitos internos na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, nomeadamente com a militante Maria Veleda, sobre a proposta apresentada ao Governo para se alterar o Código Eleitoral, demitiu-se do cargo de presidente e fundou a Associação de Propaganda Feminista.

Em 1911, viajou para o Brasil quando o seu marido foi nomeado cônsul em São Paulo. Tornou-se professora e escreveu vários livros, entre os quais "Lendo e Aprendendo" e "Lição de História", dois manuais utilizados pelas escolas brasileiras e portuguesas. Três anos mais tarde, Paulino de Oliveira faleceu, a 13 de Março de 1914, vitimado pela tuberculose. Após enviuvar, Ana de Castro Osório regressou a Portugal com os seus dois filhos João de Castro Osório (1899-1970) e José Osório de Oliveira (1900-1964), e fixou residência em Lisboa, na Rua do Arco do Limoeiro.

Atenta ao clima de tensão, e subsequente guerra, presente na Europa, cria em 1914, a Comissão Feminina Pela Pátria, juntamente com Ana Augusta de Castilho, Antónia Bermudes e Maria Benedita Mouzinho de Albuquerque Pinho. Esta seria a primeira instituição organizada em Portugal com o objectivo de mobilizar as mulheres para o esforço de guerra. Anos mais tarde, com a participação das forças militares portuguesas na Primeira Grande Guerra, Elzira Dantas Machado, ao tempo Primeira Dama, viria a remodelar a comissão e fundar a Cruzadas das Mulheres Portuguesas, um movimento de beneficência que prestava assistência aos soldados mobilizados e suas famílias.

Assume ainda, em Junho de 1916, a pedido de António Maria da Silva, ministro do Trabalho, o cargo de Subinspectora dos Trabalhos Técnicos Femininos. Ao seu desempenho foram-lhe feitas várias críticas e acusações, nomeadamente pela jornalista Adelaide Abrantes, no jornal "A Voz", questionando a utilidade do cargo, sendo no seu ponto de vista um caso de favorecimento do ministro às suas "afilhadas", que viviam em conivência com a classe dos patrões ao não aplicarem no terreno as novas leis de trabalho decretadas pelo governo, tais como a abolição dos serões das costureiras.

Nos anos seguintes, Ana de Castro Osório continuou a escrever e afirmou-se como uma escritora reconhecida a nível nacional e no Brasil, regressando a este país, em 1922, para proferir uma série de conferências no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Sobre essas conferências, escreveu o livro "A Grande Aliança" (1924).

No fim da Primeira República, Ana de Castro Osório encontrava se "desiludida" com a situação política em Portugal e reduziu a sua intervenção pública ao trabalho na Cruzada das Mulheres Portuguesas e à sua escrita.

Faleceu a 23 de Março de 1935. Contudo, sobre a sua morte, pouca informação parece ser exacta, atribuindo-se, em alguns periódicos da época, dois lugares distintos para o acontecimento: Lisboa e Setúbal. Pesquisas posteriores revelaram ter falecido na Rua Augusto Rosa, número 17, segundo andar, freguesia da Sé, Lisboa, apontando como causa de morte nefrite crónica.

Encontra o seu descanso final no jazigo de família número 4814, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. No seu funeral, compareceram figuras de áreas distintas, entre as quais Regina Quintanilha, Fernanda de Castro, Maria Veleda, João de Barros, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Rodrigues Miguéis e Hernâni Cidade.

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A Vinha

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Luis sahira para o colegio ainda criança e de lá para as escolas superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal.

Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida e a liberdade para revêr a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.

E—pobre Luis!—era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de guarda-marinha e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o labio superior.

E voltava amesquinhado aos seus proprios olhos, elle que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrificio de cada momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroismo obscuro e respeitavel que a sua educação representava na vida da familia.

Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciencia lhe ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fôra preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitétar para que elle aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo periodo de tempo.

Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso, que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.

Dizia-lhe a consciencia que tal procedimento não era justo, porque—se é verdade que não fôra nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de distinções e premios que esmagam o proprio dôno e irritam os companheiros,—é certo que o curso lhe sahira limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o levava com uma perna ás costas.

Lembrava-se de pensar ás vezes no facto, um tanto irritante, do seu afastamento sistematico da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, voluvel e bondoso, a desconfiança cruel.

Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não maguar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais nitida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.

Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fôra desde criança uma pequena figura simpatica de mulher, dessas mulheres adoraveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoraveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providencia, o refugio e a esperança.

Quando fôra resolvida a sua entrada para o colegio militar, Luis ficara radiante. É que essa admissão fôra o seu maior empenho, a ambição de largos mêses e dias—desde que na terra aparecera, a proposito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, vermelho e branco, a panejarem ao sol.

Não pensava noutra coisa senão naquella sua entrada para o colegio em que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida.

Fazia projectos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.

Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem—e o comboio não espera!—quando viu a mãe soluçante por vêr partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido—todos o sabiam—o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, proprio dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira, nas sensações.

E ella, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira cahida pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem áquella dôr excessiva, nem palavras que consolassem aquella alma desolada.

Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito ainda criancil, mas o seu olhar era limpido, e a face, ligeiramente enrubecida, em coisa alguma trahia o esforço enorme de vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heroica aquella criança que represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legitimo desgosto ao vêr partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.

Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes corre desemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão maguados desgostos infantis, que todos desprezam e são talvez os mais violentos e os mais desesperadores de toda a vida.

Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de excéção, que em si concentram a propria dôr e só têm para a dos outros carinho e consolo.

Se o Luis soubesse o que ella sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas coisas—os animais, as flôres, os brinquedos abandonados!... Se elle soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia ficar, naquella pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ella que não cultivara mais amizades infantis álêm da delle!...

Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: elle, contando tudo quanto via de novo e o trazia em contínua sobreexcitação, em duas linhas sugestivas, sempre apressado por falta de paciencia para escrever; ella, narrando detalhadamente os pequenos casos domesticos, que tanto interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e brinquedos, a relação de todas as pessôas avistadas, os amigos da casa que perguntavam sempre por elle, os seus recados, as suas proprias palavras.

Luis bem o conhecia: eram verdadeiros recados aquelles,—não banalidades ceremoniosas—que evocavam, á sua recordação saudosa, as figuras amigas que as enviavam, de longe.

Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em vespera de dia santo, a esperança das férias, a contagem dos dias que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.

Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e elle já só esperava a ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o levaria ao conchêgo da familia e ao abrigo das velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e crescer umas poucas de gerações de rapazes como elle, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o pai para seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês se passa sem se sentir na vida duma criança.

Assim foi passando o tempo: aos anos de colegio seguiram-se os da escola, sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o preparasse para o martirio incomportavel que estava agora sofrendo, sem que coisa alguma lhe fizesse supôr o doloroso drama, obscuro e martirisante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com ferocidade os corações que tanto lhe queriam...

Tambem, que satisfação, livre de preocupações, elle teve quando recebeu aquella carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e banais:—que tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem viver para Lisbôa. Ficariam assim mais perto delle, quando as suas longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a familia. Assim estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.

Que alegria a delle! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já abrigado os pais e os avós, e vivia como sêr consciente dentro do fundo da sua alma.

Como Eduarda, querendo poupar toda a mágua ao seu coração mal preparado para a dôr, mostrava bem conhecer essa natureza de amoravel e sentimental, que um nada arrebata á mais acêsa alegria como á mais desolada tristeza!...

A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ella viver adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a elle a sensação nitida da sua vida propria e, apanhando-o nessa engrenagem barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de toda a gente.

Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer se deter a pensar nos provaveis motivos que tinham determinado aquella resolução.

Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que se sentia muito velha e doente, mas elle sorria-se confiante e não a via senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de toda aquella colmeia que era a casa paterna.

Com que impaciencia febril esperou o dia marcado para a chegada, e como logo de manhã, ao alvorecer desse dia bemdito, se sentiu outro, alegre até á loucura de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança, sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha!

Ás horas da comida não conseguiu engulir com desfastio os costumados manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado prometendo-lhe trazer a familia para que os conhecesse,—havia ella de vêr como eram seus amigos...

E a velha D. Engracia, que tantas vezes se arreliara com as suas telhas, como ella dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos com a comunicativa sensibilidade daquella alma que se escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom.

Muito antes da tarde já elle se dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas horas mais tarde.

Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito nas conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca os seus amigos o tinham visto...

A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso ou lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais que as queirâmos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem felicidade. Elle lá estava, desde muito cedo, esperando na gare, sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel despontou a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora, ao passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao vêr as três cabeças, que resumiam todos os seus grandes afectos, debruçarem-se nas janelas do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E elle, que só reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança esbelta que deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão vélhinha, que não podia afirmar que não houvesse engano.

Oh, mas a vélhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao retrato.

Tambem Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco menos forte do que ella, que se talhara e desenvolvera longe da atmosféra falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.

Chegou tambem a vez da Maria o abraçar,—Maria; a criada fiel que os acompanhara sempre, que era alguem na familia, uma pessôa que a todos satisfazia e com quem todos contavam.

Inolvidavel momento aquelle que os reunia, depois de tão grande e inexplicavel afastamento; encantador de contentamento esse primeiro repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as bagagens podessem chegar á casa muito alegre que elle escolhera, com vistas sobre todo o estuario azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora...

Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se comparasse ao espétáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes, estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faroes faziam tambem palpitar e viver, como outra cidade flutuante.

A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu logar, Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que os seus olhos de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria quasi infantil que levou á mãe a velha caixa de xarão, herança da avósinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas mãositas de criança.

Uma chavena, uma jarra, qualquer coisa emfim que ia aparecendo, lhe ia trazendo uma saudade da infancia longinqua e que esvoaçava agora na sua alma como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.

A mãe, que um momento ficara só junto delle, chorava silenciosamente, olhando-o com ternura.

Luis não compreendia—chorar!?... Então não estava satisfeita por estar em Lisbôa, com elle? Não viera por sua muito livre vontade?

E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando mesmo—no egoismo inconsciente dos que sofrem—associar todos á sua dôr, não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não vira.

—Fôra uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante anos, contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negocios—o Luis devia lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades, as compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e até a sua propria casa de moradia, quando já nada mais tinha que desafiasse a cubiça alheia, lá se fôra embora, com o quintal. Sim, esse fôra o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e tarde se poderia cicatrisar na sua pobre alma dolorida.

As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura, que assim foi contando, uma a uma, todas as suas dôres, não poupando Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna abandonou os que ha pouco invejavam.

Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando com uma persistencia dolorosa essa vélhinha que chorava um passado em frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que elle deixara rica e tão feliz dez anos antes.

—E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham alheado assim de todos os desgostos da familia, como se fosse um estranho? Não era filho como os outros, não devia ser igualmente filho para as alegrias como para os sofrimentos?...

—Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas nem o pai nem Eduarda o consentiram para que elle se não impressionasse e desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta.

Luis padecia naquelle momento uma tão insofrivel amargura, que no fundo do seu coração, humanamente egoista, sentia uma onda de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquella maneira... Devia-lhes uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.

Então, nesse impulso que dá a propria revolta em toda a criatura contra a dôr que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.

O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias que até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua conta. Depois, elle não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes devia?!...

E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento, porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a lamentava.

—Sim, a situação economica não era de todo desesperada. Dispensariam apenas o superfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não completamente, porque na liquidação grande parte do seu dote podéra ficar intacto.

—Oh, elle compreendia bem que não era a questão material a que mais os afligia, era a recordação dum longo passado de paz e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos em que todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação amargurada da sua dôr por vêrem o egoismo e a maldade dos que ferozmente lhe espiavam as lagrimas e as decéções.

—Elle compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fôra o deixar essa casa que representava tanto na vida afectiva da sua bôa alma de sofredôra.

Desde esse dia nunca mais Luis perdêra aquella ideia, que se tornou uma obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que lhe falariam do passado, todo o martirio a que o tinham furtado generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento, que classificava de criancice; em vão ella lhe dizia que o passado estava morto e ninguem mais o poderia resurgir; que não havia imaginação nem vontade humana capaz de fazer voltar atraz o curso da vida, que para elles se precipitara numa cachoeira desatinada e agora ia deslisar num mais bello e sorridente campo.

Mas não! Elle fizera desse projecto o seu sonho, o seu misterio de apaixonado, e iria, sem que ninguem o podesse impedir de o fazer.

A ideia de que a casa que fôra o lar abençoado de toda a sua familia já lhes não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse, num romantico impulso de sentimento—que mal compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os arrebatamentos de apaixonado—evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediaveis separações.

Agora, elle ali vinha, como um namorado, revêr pela ultima vez as coisas que já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para outros as suas coisas, os seus afectos.

Para que viera?—pensava já—porque não se deixara guiar pelos conselhos da corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho com os restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque viera?!...—É que queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido aquelles que amava.

Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim, pelo poder evocativo da sua memoria despertada pela visão, lagrima por lagrima, desespero por desespero, vexame por vexame, revolta por revolta, a vulgar mas horrivel tragedia desse incidente numa familia burguêsa.

No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam num sôno reparador. Os nervos em sobreexcitação faziam-no reviver, na memoria, todas as circunstancias torturantes em que se déra o desastre final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que o seu coração teria passado se a elles tivesse assistido.

Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos convulsivos, que lhe desoprimissem o peito...

Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada o sôno dos viajantes, era para elle o martelar desesperador do condenado que assiste ao levantar da sua propria forca.

Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados de verão, varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva nas invernias inclementes—com as suas paisagens cristalisadas de sonho; as suas feiras rumorosas; as ladainhas atravez dos campos em flôr, pelo despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fôra, romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as janeiras, cantadas á sua porta e em que os versos laudatorios lhe agradavam sempre; as semanas santas, com procissões na rua, por esse agonisar de sol doirado em que um Deus assistia á morte doutro Deus...

Tudo isso elle revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma e o fazia viver por momentos uma existencia, que se não repetiria mais.

Agora, em frente da antiga casa que lhe enchêra de sonhos os últimos mêses de vida, Luis sentia-se frio.

Quizera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dôr—na sua alma gelada.

Nem a casa lhe parecia a mesma—e decerto não era!—cortadas as trepadeiras que a revestiam de verde e lilaz e que a perfumavam dôcemente com os cachos exoticos das glicinias rôxas. Até as janelas tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao sol faiscamentos de mica e escureciam sem se resentirem das intemperies, suavemente, como se envelhece sem sobresalto nem luta, quando se vive sem preocupações.

Já não era a mesma—nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.

Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o interior e então quasi lhe deu vontade de rir, tanto era banal o mobiliario que a guarnecia, tão charramente burguêsa e sem gosto a decoração que a tornava uma casa trivial de endinheirados, de adventicios sem educação.

Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz enganar-se a si proprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim, numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.

Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando um olhar prescrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo apenas de verdura, e sofrêra, como a casa, a influencia dos novos dônos.

Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos recantos amaveis de sombra, o mesmo perfume saudavel do pomar e da horta verdejantes.

E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o mesmo que bastas vezes saltara para comer os bellos cachos de uva ferral de grandes bagos córados.

Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar tantas garotices, tanta alegria passada...

Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes da sua ida para o colegio.

Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquelle grande campo de oliveiras e terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham desejado na familia e por teima de camponios rudes lhes não pertencia desde muito.

Como elle ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente tambem, ao vêr cahir uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para elles nunca deixara de sêr o quintal.

Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que ao fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o fazia agora sorrir.

Lembrava-se bem como Eduarda estava melancolica naquella tarde de outôno, olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de destruição—porta escancarada por onde entrariam todos os desastres... Presentimentos de alma extremamente vibratil, ou acaso sem nenhuma significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espirito representam?!

Ali tambem havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida. Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro pelas primaveras, e pelos verões era um manto de oiro, com as espigas acurvadas ao pêso do grão já maduro.

Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno muro como signal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha orgulhosa.

Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca como fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magnificas; uma rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois lembrava-se dumas certas ameixas, muito rôxas e carnudas, que ainda lhe faziam crescer a agua na bôca. E a nespereira imensa que sombreava a horta, com grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha uma historia engraçada, que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma esfogueteada de risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria abraçar piedosamente numa despedida derradeira.

Se fosse tempo de lilazes, como teria gosto de levar um grande mólho de flôres para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente criterio isso não lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?!